Entre o homem real que se sentava à mesa , ria com os amigos, evitava falar do que lhe doía, falava do que lhe doía ironizando, atendia e telefone e projetava escrever um diário para o qual pedia conselhos, entre esse e a figura que os monumentos e a História elevam agora acima do solo, lamento dizer, mas não há grande diferença.
Se Salgueiro Maia se transformou em mito, foi porque em pessoa ele mesmo transportava essa aura de figura à parte. Foi assim que o vi nos poucos encontros que tivemos, e foi assim que o imaginei quando o transformei em personagem. Não custou nada. A sua figura estava ali, intacta, à espera das páginas brancas. Ele, Charlie 8, encheu as páginas, e a sua figura escreveu-as por si mesmo. Fui ajudada pela sua mulher, Natércia, que me permitiu olhar para os seus lugares, quando ele já cá não estava. Mas ela falou de tal maneira que a parte dele que eu desconhecia veio pela voz da Natércia, e foi tão simples. Natércia cuidava da imagem do seu marido como se fosse sua filha e sua mãe.
Não sei se a paixão que coloquei na reconstrução da sua figura tocada por roupas angélicas vai contra alguma narrativa real. Na minha ideia, e do que sobejou das palavras e atos a que diretamente assisti, fui fiel a uma imagem grandiosa própria daqueles que algumas vezes na vida souberam oferecer o seu corpo pela mudança da História.
Do meu ponto de vista, não precisam de lhe chamar herói, tão só o memorável entres os outros memoráveis. Passaram 48 anos. Eles continuam tão jovens como os jovens que nasceram há pouco. A proeza que cometeram ainda não terminou. Ninguém, nem o tempo, foi capaz de a destronar. Escrever sobre tudo isso, foi fácil, não custou nada.
Boliqueime, 31 de Março de 2022
De Os Memoráveis
“ (…) O meu marido era assim. Desde África que o meu marido considerava que a amizade era a melhor ração de combate que se podia levar para o campo de batalha. Aquele embate com o tenente aconteceu às dez da manhã, e o meu marido sempre disse que essa tinha sido a primeira página de uma folha decisiva de que ele mesmo, às dez e quarenta e cinco, iria interpretar a segunda, quando ficou em frente do carro blindado, a olhar para o visor, olhos nos olhos com o alferes que se encontrava no habitáculo do M47, e o meu marido não se desviou um milímetro que fosse. Mas, o seu a seu dono, a primeira cena do lenço não foi interpretada pelo meu marido…’
A viúva olhava para a janela onde a água batia.
‘Uma folha com duas páginas.’ Disse Margarida Lota, incitando a viúva.
‘Exacto. O meu marido nunca quis que os dois actos se confundissem, nunca quis usurpar fosse o que fosse, nem uma mensagem escrita, nem uma palavra que ele mesmo não tivesse dito. É verdade que o meu marido levava consigo vários lenços brancos, que eu bem lhos tinha preparado, mas nem sei se usou algum deles, só sei que avançou para os carros da Cavalaria 7, levando num dos bolsos uma granada de mão, disposto a imolar-se. Depois aconteceu o que já disse. Essa cena inesquecível, passada com o meu marido, foi o segundo capítulo de uma sequência definitiva. Mas ele sempre afirmou que o ponto de viragem tinha acontecido antes. E ainda hoje pode ser confirmado, por quem se der ao trabalho de procurar, porque ficou registado, um rapaz de braços abertos, a avançar com um lenço nas mãos, dispondo -se ao fogo contrário. Ele sempre o disse…’ Continuou a viúva, e percebia-se que já deveria ter contado o episódio cem vezes, para fazer semelhante invocação sem qualquer intervalo nem hesitação entre as frases. E concluiu – ‘Foi aí que o meu marido compreendeu que a boa sorte vinha a caminho.’