O maior historiador do pensamento português de todos os tempos numa perspetiva espiritualista e católica, estatuto que reivindica desde os primeiros livros e a que sempre se manteve fiel, a obra de Pinharanda Gomes, ainda que vasta, foi escrita sem o autor ter frequentado um curso universitário, devido a questões económicas de sobrevivência em Lisboa após ter feito o liceu na Guarda. Foi o último grande autodidata, frequentando diariamente as bibliotecas da capital, especialmente a Biblioteca Nacional.
Nascido em 1939 em Quadrazais, Sabugal, terra raiana de contrabandistas, falecido em Santo António de Cavaleiros, Loures, em 2019, Pinharanda Gomes só soube ser de nacionalidade portuguesa (portanto não espanhol) quando iniciou a frequência do ensino primário. Possuidor do mais vasto saber sobre a história do pensamento português, de que se destacam os três volumes da História da Filosofia Portuguesa (História da Filosofia Portuguesa 1. A Filosofia Hebraico-Portuguesa, 1981; História da Filosofia Portuguesa 2. A Patrologia Lusitana, 1983, e História da Filosofia Portuguesa 3. A Filosofia Arábigo-Portuguesa, 1991), bem como os seis volumes da série Pensamento Português, regista em todos os seus livros uma adesão viva ao modo religioso e espiritualista de tematização das questões filosóficas. Autor prolixo, resgatou do esquecimento histórico inúmeros autores integrados na mundividência espiritualista, prestando sólida consistência à existência de uma corrente filosófica em Portugal que, em continuidade, por vezes subterraneamente, desprezada pelo racionalismo e pelo positivismo, condenada pelo modernismo, tem privilegiado, dos alvores da nacionalidade até à atualidade, o espírito face à matéria, a alma face ao corpo, a transcendência face à imanência, a metafísica face positividade empírica, enfim, Deus face à idolatria dos produtos humanos reificados segundo ambições ideológicas ou políticas e desejos sociais. Este é, de facto e de direito, o estatuto singular de Pinharanda Gomes no seio da cultura portuguesa contemporânea: para além do seu pensamento pessoal, os seus estudos demarcam com clareza o fio de continuidade existente em Portugal, de um modo constitutivo, de pensadores que, ora situado no poder de Estado, ora contra este, ora a este indiferentes (os místicos), incessantemente, sem hiatos temporais, interrogaram, sem desfalecimento, segundo uma posição religiosa (não necessariamente católica e eclesiástica, como, por exemplo Amorim Viana, Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes) ou apenas espiritual (por exemplo, Antero de Quental) a face de Deus e as qualificações filosóficas decorrentes: o ser, a existência, a essência, o devir, a causalidade e o determinismo, o acaso, a criação, a morte…
Como um monge medieval profano vivendo na era do consumismo, idealista por formação e constituição, trabalhador denodado, explorando o mais minucioso arquivo, crente com devoção sagrada entre massas ateias ou agnósticas, nobre de espírito entre a plebe voraz de igualitarismo, Pinharanda Gomes, primeiro frequentador dos arquivos da Biblioteca Nacional à hora de abertura, constituiu, um exemplo vivo de um estudioso desinteressado, sem prebendas nem honras institucionais, fazendo do estudo erudito uma vocação de vida.
Pinharanda Gomes estatui o seu pensamento do lado do peregrino que busca uma estalagem para o descanso do pensamento, sabendo que este se constitui como uma longa caminhada tortuosa, uma longa escadaria labiríntica, sem princípio nem fim que não seja o da transcendência da Graça.
No volume II de Pensamento Português, de 1972, Pinharanda Gomes evidencia com clareza a essência da sua atitude filosófica: o afã do Infinito, a “Fome de Deus” numa mente dominada pela “Cisão”, pela “Queda” e, portanto, pela “Finitude”, marca existencial do “Tempo”. O homem, ser cindido, “finito que existe separado do Infinito”, é ator do drama mental da sua opção de se volver mais para a Terra ou mais para o Céu, mais para a Cosmologia ou mais para a Teologia, assumir-se mais como telúrico ou mais como ser espiritual, mas, seja qual for a sua opção livre, será sempre um ser cindido buscando ansiosame4nte a sua matriz divina.
Assim, peregrino é o homem, peregrina é a filosofia, peregrina é a história, peregrina é a humanidade. Condizente com o seu pensamento, o título do seu primeiro livre exprime, em síntese, toda a aventura filosófica de Pinharanda Gomes: Peregrino do Absoluto (1965).
Era membro da Academia Luso-Brasileira de Letras, Academia Luso-Brasileira de Filosofia, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade de Língua Portuguesa, da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, da Academia Portuguesa de História, e sócio fundador do Instituto de Filosofia e Estudos Interdisciplinares da Universidade do Rio de Janeiro e do Instituto D. João de Castro. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade da Beira Interior da Covilhã.
A partir de 13 de Abril e durante o mês de Maio, a Biblioteca Nacional homenageia Pinharanda Gomes com uma exposição.
Miguel Real
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