Lisboa, 09 fev (Lusa) – O Congresso Fernando Pessoa abriu hoje com o investigador Richard Zenith a defender os heterónimos como desdobramento necessário do poeta e o professor António Feijó a compará-los ao “cabelo comprido dos Beatles”, mas a dúvida manteve-se: “Quem é Pessoa?”.
O Congresso Internacional Fernando Pessoa 2017 abriu hoje, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com um primeiro painel dedicado ao significado da palavra “eu” pronunciada por Fernando Pessoa, as suas implicações na obra ortónima e heterónima, e à dúvida sobre se o trabalho do poeta é marcado por um cunho pessoal ou impessoal.
Os investigadores António Feijó e Richard Zenith tentaram trazer alguma luz a esta problemática, divergindo na importância dos heterónimos, mas ambos reconhecendo a grandiosidade da obra de Pessoa e a incapacidade de responder à pergunta inicial, quem é o “eu” pessoano.
“Hoje o segredo mantém-se, os genes não se explicam. Já há dez anos que trabalho a biografia de Fernando Pessoa, à procura de saber quem era Fernando Pessoa e ainda hoje não sei”, afirmou Richard Zenith, Prémio Pessoa 2012, que está a escrever a biografia do poeta.
Para se perceber a complexidade dos heterónimos no estudo de Pessoa, o investigador citou um ensaio de João Gaspar Simões, historiador da literatura e primeiro biógrafo de Pessoa, em que este justifica a heteronímia com uma “incapacidade artística” do poeta, “sintoma de dispersão consciente de quem tem a certeza de ser incapaz de se fundir para uma grande obra de arte”.
Mas onde Gaspar Simões via incapacidade, o crítico Rebelo Bettencourt via “sobrecapacidade”, conceito mais coincidente com o que o próprio Richard Zenith afirma ter em relação a Fernando Pessoa.
A ideia defendida pelos dois, Bettencourt e Zenith, é que é tão completa a complexidade de Fernando Pessoa que ele teve de se desdobrar em vários.
Para António Feijó, “a razão do interesse pelo eu do autor é os heterónimos”, mas, ao contrário de Richard Zenith, para quem há uma imersão na alteridade, para António Feijó, há uma imersão dramática.
Ou seja, os heterónimos são uma ficção criada pelo próprio poeta, são uma representação dramática, como personagens que se criam.
“A natureza dramática do poeta é uma ficção. A capacidade dramatúrgica do autor permite a sua transmutação no que cria”, afirma António Feijó, citando vários estudiosos que não atribuem grande importância aos heterónimos no global da obra de Pessoa, como Jorge de Sena, que afirma que os heterónimos parecem personagens evadidas que habitam sós, Gaspar Simões que acha que é tudo uma charada e José Régio, para quem seria fácil inventar heterónimos desde que se isolasse a personalidade de cada um.
Na opinião de António Feijó, a questão dos heterónimos é uma coisa que tem perturbado a leitura de Pessoa e a perceção exata da dimensão de um poeta único.
É neste sentido que o investigador faz um paralelismo com os Beatles, que “têm alguma da produção musical mais extraordinária do século XX”, mas muita gente agarrou-se ao facto de terem o cabelo comprido.
“Com Fernando Pessoa é a mesma coisa. É tudo o mesmo plano, é tudo a mesma obra, até as cartas que escreveu, aquilo tudo é Pessoa. Os heterónimos são o cabelo comprido de Pessoa”, afirmou.
Richard Zenith contrapõe, discordando que “os heterónimos sejam como os cabelos compridos dos Beatles” e recua ao passado para recordar que as manifestações de heteronímia em Fernando Pessoa surgem na infância, como uma “multiplicidade e dificuldade de apanhar um eu coeso”, pois desde “muito pequenino tem essa consciência”.
“Há muitas cartas que Pessoa escrevia, que começava e não terminava. Heterónimos pouco conhecidos, em inglês [Alexander Search], português, isso era para ele, não era para publicar, não era para o público ver, não, era uma experiencia dele, uma mania, uma obsessão. Houve essa sensibilidade interna”, defendeu.
A terminar, em “nota de roda-pé”, António Feijó considerou que “a designação de heterónimos infantis é ardilosa”, porque esses só existem porque existem os outros três (Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro).
“Chevalier de Pas [heterónimo francês] não deixou rasto. Só existe porque existe Ricardo Reis. São todos reconstruídos retroativamente”, defendeu.
Richard Zenith não se conteve e fez questão de acrescentar uma “nota de roda pé à nota de roda pé”: “Mas sem Chevalier de Pas não teriam nascido Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro”.
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