Fim do ensino da letra cursiva nas escolas

Os Estados Unidos anunciaram o fim do ensino da letra cursiva nas escolas para que os alunos sejam alfabetizados nos computadores. Questionando se o lápis e o papel estão mesmo ultrapassados, estudiosos e críticos analisam se a cognição infantil não ficará comprometida com a novidade. Até a grafologia pode entrar para a história em um futuro não muito distante Esses dias, a notícia de que os Estados Unidos estariam tirando do currículo o ensino da letra cursiva, escrita a mão, para substituí-la pelo uso escorreito do teclado dos computadores, melhor dizendo, dos tablets, gerou bastante surpresa e incômodo.

Não sem razão. Nossa geração pode estar protagonizando a gênese de uma transformação que, pelo andar da carruagem, pode digitar um ponto final em mais um capítulo da história da humanidade escrita a pena e lápis, em pergaminho e papéis.

Que quase ninguém mais escreve a mão, isso é fato. Na era do “Ctrl c + Ctrl v”, as letras artisticamente desenhadas e imortalizadas em manuscritos do século XVI, por exemplo, hoje estão restritas a poucas letras cheias de rococós, estampadas em envelopes de convites de casamento. Cartas e missivas foram substituídas pelos práticos e-mails. Aquele bilhetinho previamente perfumado? Se transformou em torpedo mesmo.

Logo, o que há pouco tempo parecia inquestionável, hoje é realidade em curso. O argumento dos partidários da ideia de que o ensino da letra escrita está ultrapassado, e que o verbo “digitar” superou a conjugação do “escrever” é forte. Provavelmente um caminho sem volta. No mundo inteiro, principalmente em países desenvolvidos, o uso do livro didático já é combinado com tablets que comportam infinitamente mais informações que os cadernos e livros carregados em mochilas por estudantes do passado.

Modismo tecnológico

O projeto-piloto aplicado no Estado de Indiana, na região centro-oeste dos EUA, que prevê a adesão de outros 40 Estados participantes do Common Core Stated Standards Initiativa (Iniciativa para um Padrão Comum de Currículo), movimento que visa a padronização do ensino básico nos Estados Unidos, por enquanto, é opcional. Mas a recomendação é que as escolas deixem de ensinar a letra cursiva aos seus alunos e se “foquem em áreas mais importantes”.

Difícil não ficar nostálgico diante da iminência do que pode representar, em um futuro não tão distante assim, o fim da escrita manual. E o que será da assinatura pessoal que identifica nossos documentos? Estaremos mesmo fadados aos chips e tarjas? E a grafologia, com seus estudos que garantem decifrar a alma humana pelos traços revelados nas letras cursivas? Será o seu fim? E os cadernos de caligrafia? Ainda existem?

Sem lápis e sem borracha

Entre os que se manifestaram a respeito do assunto, está o escritor e jornalista Gilberto Dimenstein, que, esse mês, publicou em sua coluna que alunos de escolas públicas da cidade de Nova Jersey, transformada em “laboratório educacional”, irão aprender álgebra sem lápis e borracha, utilizando, apenas, um aplicativo para o tablet. Tem mais. O governo da Coreia do Sul também pretende substituir o uso do livro em sala de aula por suportes interativos.

A contar que os Estados Unidos continuam ditando normas, padrões e diretrizes em todas as áreas do conhecimento, principalmente na educação, não será de admirar que países emergentes façam coro para por em prática suas primeiras experiências. Para medir a temperatura dessa notícia pelas bandas de cá, o Caderno 3 conversou com o professor doutor José Lemos Monteiro, cuja trajetória intelectual é marcada pela dedicação ao ensino da Língua Portuguesa. O estudioso acredita que a decisão de substituir o ensino da letra escrita pela digitalizada já era esperada como a verdadeira crônica de uma morte anunciada.

“Mais de 40 estados adotaram essa proposta, mas isso já era de se esperar, pelo menos da parte dos americanos. Porque, veja o seguinte: se apelarmos para lógica, observamos que só deve ser eliminado o que é errado, tem consequências desastrosas, que não serve para nada, não é bem aceito. No caso da letra cursiva, perguntamos: até que ponto as pessoas estão escrevendo? Quantas horas por dia, ou quantos dias por semana, você passa sem escrever, sem pegar em uma caneta? Na verdade, as pessoas estão escrevendo muito pouco, em consequência disso, talvez, estão pensando também muito menos que antes. Eu não escrevo mais, ninguém escreve mais, esse argumento é muito forte. A gente só digita. Meus últimos livros não foram escritos a mão, foram todos digitados. Se você perceber bem, muita coisa foi retirada sem explicação. Retiraram dos nossos alunos, por exemplo, a cópia, o ditado, sem dizer porquê. Estava ultrapassado! Praticamente retiraram o ensino da gramática. Mas, nesse caso, a grande verdade é que os professores não sabem gramática para ensinar. Retiram e não colocam outra coisa”, ressalta o professor Lemos.

Letra escrita a tecla

O pesquisador destaca que há diversas vertentes saudosistas de olho na catarse de uma das formas mais antigas da expressão humana, que também questionam o fim da letra personificada, em detrimento do uso das letras de forma ou apenas as virtualmente digitadas.

“Os Estados Unidos estão eliminando, talvez, porque já achem desnecessário. Se a pessoa com o teclado identifica as letras, é capaz de ler, de digitar uma mensagem, então, já está alfabetizada. O próximo passo será eliminar a escrita a mão, praticamente ninguém vai escrever, todos vão digitar no teclado. É a coisa horrível da tecnologia, mas é o próximo passo. Se já estão adotando a eliminação da letra cursiva, o próximo passo será a eliminação da escrita a mão. Agora tem os problemas. A letra cursiva tem certos atributos que a letra tipo de imprensa não tem. Ela identifica em primeiro lugar a pessoa. A assinatura revela tudo. Se a pessoa, por exemplo, faz uma assinatura e, no fim, uma série de círculos, circundado os traços, sabemos que é uma pessoa extremamente egocêntrica, que está construindo um mundo fechado para ela. Existem aspectos da personalidade que são transparentes e passam para o formato da letra. A grafologia, por exemplo, não poderá ser feita”, diz o pesquisador.

E acrescenta: “O brasileiro fica procurando saber o que foi feito lá fora para fazer aqui. Mas, também, quem pode discutir com o argumento aderido por mais de 40 estados americanos? O mais provável é que isso se irradie pelo mundo. Para abandonar o ensino da letra escrita, eles alegam perda de tempo. Se a criança se alfabetizou com a letra de imprensa, já sabe ler, porque ir gastar mais tempo com a letra cursiva? Mas é preciso lembrar que ela está treinando, mexendo com seus hábitos psicomotores, e aí é só perceber a Teoria Piagetiana (Jean Piaget 1896-1989) do desenvolvimento psicomotor até o desenvolvimento mental, até o estágio das operações formais. Escrever envolve desenvolvimento de hábitos psicomotores. A psicomotricidade não existe plena numa criança de seis anos de idade. Ela vai se desenvolvendo aos poucos, o desenvolvimento é lento. Agora, lógico que é mais fácil desenhar uma letra tipo bastão, do que tentar imitar uma letra cursiva. Porque então se começa a alfabetizar com esse tipo de letra? Simplesmente pelo desenvolvimento psicomotor da criança”.

O que nos resta agora é aguardar os primeiros resultados dessa experiência. Por enquanto, continua tudo como dantes. De promissor nisso tudo, por enquanto, além do ´boom´ na pulverização dos já quase indispensáveis tablets, temos a valorização de quem se dedica a trabalhar a letra cursiva como arte.

Arte escrita

A calígrafa Adriana Menezes, que há mais de 10 anos tem como profissão exclusiva caligrafar convites de casamento, álbuns e poemas, garante não ter medo das mudanças.

“A procura pela letra escrita a mão é muito grande. Trabalho com caneta bico de pena e aprimoro esse trabalho constantemente. Estudei em colégio de freira, essa letra que tenho hoje é fruto de muito caderno de caligrafia, que fiz até a 6ª série. Pode até diminuir, mas a escrita a mão não vai acabar nunca”, acredita Adriana.

O professor Lemos, doutor em Língua Portuguesa, diz que o fim do ensino da letra cursiva já era esperado pelo desuso

 

KID JÚNIOR

 

Fique por dentro Perfil

José Lemos Monteiro foi professor da Unifor, UFC e Uece. Sua produção abrange três áreas: literatura, estudos educacionais e pesquisa linguística. Publicou os romances: “A valsa de Hiroxima” (1980), “A serra do arco-íris” (1982) e “O silêncio dos sinos” (1986). Como crítico, publicou artigos como: “O universo mí(s)tico de José Alcides Pinto” (1979), “O discurso literário de Moreira Campos” (1980) e “O compromisso literário de Eduardo Campos” (1981). Nos estudos educacionais fez uma série de reflexões sobre o ensino brasileiro, com destaque para o ensino do português após a Lei 5.692.

NATERCIA ROCHA
REPÓRTER

 

FONTE: Diário do Nordeste

Subscreva as nossas informações
Scroll to Top