Díli, 25 out (Lusa) – A história dos anos de vida de Maria das Dores, irmã de Zeca Afonso, em Timor-Leste, onde chegou a estar num campo de concentração japonês, é paralelamente uma memória de drama e sofrimento e de uma infância de liberdade.
A opinião é do realizador Luis Filipe Rocha, que acaba de concluir duas semanas de filmagens do documentário “
“, em vários pontos de Timor-Leste, para recordar, com Maria das Dores – Mariazinha -, os cerca de sete anos que viveu no território.
De um lado, “o drama e o sofrimento e, sobretudo, a enorme preocupação que se abateu sobre uma criança dos 7 aos 13 anos, em relação aos pais”, com a mãe doente e o pai “progressivamente diminuído e debilitado”.
Do outro, a infância de uma criança que, “a despeito das condições adversas e muito violentas que a rodeavam, cresceu com uma enorme relação com terra, com os animais, com a natureza” e com os timorenses.
“Isso deixou uma marca muito positiva de liberdade. A liberdade de poder crescer com uma enormíssima falta de condicionalismo que a vida social e adulta normalmente impõe às crianças”, explica o realizador.
Uma forte ligação à terra, à natureza, ao sol e ao mar e, sobretudo, a essa memória do cheiro das Rosas de Ermera, que Mariazinha diz nunca ter desaparecido da sua vida. Ao ponto de, em Cascais, onde vivia, sair cedo para ir ao mercado e passar nas bancas das flores e regressar de imediato a essa memória da vila a sul de Díli, também famosa pelo café.
“Não esconde que a memória de Timor é fundadora, marcante, decisiva para o resto da vida dela e que estes 70 anos nunca apagaram nem as recordações, nem essa formação humana de grande ligação natural a vida”, disse.
“A roupa era escassa, andava sempre descalça, tomava banho quando tomava, lavava o cabelo com cascas de árvores, apanhava a bosta dos cavalos dos japoneses para adubar uma pequena horta. Subia as árvores para colher rebentos, muitas vezes para comer”, explica Luís Filipe Rocha.
Em conversa com a Lusa, depois de uma viagem emocionante às memórias de Maria das Dores – protagonista central do documentário “Rosas de Ermera”, que espera ter concluído no próximo ano -, o realizador explicou a motivação do projeto, que gostaria de ter visto nascer como uma longa-metragem de ficção.
“A história começou há cerca de 17 anos quando conheci as memórias da Mariazinha Afonso, da estadia aqui em Timor durante a 2.ª Grande Guerra. Chegou aqui com sete anos, em 1939, acompanhando o pai que era juiz. E ficou aqui até finais de 1945”, disse.
“Viveu um primeiro período de paz e depois a entrada dos australianas e holandeses e, sobretudo, a invasão japonesa e a criação das chamadas zonas de proteção de Maubara e Liquiçá, no fundo, campos de concentração, aonde viveu com os pais, de novembro de 1942 até setembro de 45”, explica.
Foi nesses campos, na vila de Liquiçá a oeste de Díli que fez a 4.ª classe e onde “passou, ela e os pais e os restantes portugueses, grandes privações e dificuldades, chegando a haver várias mortes por inanição, por doenças”.
Amigo da família Afonso dos Santos, o realizador sublinha que Portugal é um país “sem indústria cinematográfica” – mesmo que a história de Mariazinha seja “bastante mais interessante” que histórias como o “Império do Sol”, de Steven Spielberg – e que a alternativa à ficção foi um documentário.
“Uma história de uma família, pai, mãe e três filhos – o mais velho, João Afonso, ainda vivo, o do meio, Zeca Afonso, e a mais nova, a Mariazinha – que se separa em Lourenço Marques [atual Maputo], em 1939”, recorda.
Os dois rapazes regressaram a Portugal e a Mariazinha segue para Timor com os pais, reencontrando-se apenas sete anos depois com os irmãos.
Durante um período de dois anos, a família em Portugal convenceu-se de que os que estavam em Timor tinham morrido.
“Há uma espécie de buraco negro de dois anos, sem comunicações e notícias, e o drama que é vivido em Portugal, de alguma forma, funciona também como uma espécie de resposta ao drama que os pais e Mariazinha foram vivendo aqui”, explica.
Da viagem das últimas duas semanas, Luís Filipe Rocha destaca as memórias do Bairro de Lahane em Díli – “um dos momentos mais comoventes” foi encontrar as fundações da casa onde Mariazinha viveu – e as de Liquiçá, onde esteve presa pelos japoneses.
“Do ponto de vista afetivo, anímico, moral, foi uma experiencia muito forte. Não apenas pela relação de amizade com a família toda mas naturalmente muito particularmente pela relação de amizade e de grande admiração pela Mariazinha”, confessa o realizador.
“Aumenta sobretudo a responsabilidade de tentar estar a altura do que me propus contar. Não é simples. Posso não estar à altura de um tema tão delicado, complexo, profundo, rico, humano. E, depois, porque os meios são limitadíssimos”, refere.
Luis Filipe Rocha destaca o apoio que o seu projeto teve das autoridades timorenses, com destaque para o ministro de Estado e da Presidência de Conselho de Ministros, Agio Pereira, responsáveis do Ministério da Indústria e Turismo e elementos do Arquivo e Museu da Resistência Timorense.
Por isso, garante, quer voltar a Timor-Leste com Mariazinha, para exibir “Rosas de Ermera”.