Rio – Um leitor assíduo desta coluna nos pede que expliquemos o emprego de ‘até onde’ no título que pusemos em artigo anterior (3/4/11): ‘Até onde vai a competência da ortografia das academias’. E pergunta se poderia também dizer ‘até aonde’ no aludido título.
A indagação nos oferece oportunidade de conversar com os leitores sobre duas palavras de história curiosa na nossa língua: ‘onde’ e ‘até’.
Comecemos por ‘onde’, vindo do advérbio latino ‘unde’, fonte do nosso ‘onde’, que servia para indicar no português a procedência, papel igual ao que faz hoje ‘donde’. Como a ideia de direção era indicada pela preposição ‘a’ e a de procedência pela preposição ‘de’, com o passar do tempo criaram-se as formas combinadas ‘aonde’ e ‘donde’, supondo-se que o primitivo ‘onde’ deveria indicar a ideia de repouso.
A distribuição de papéis diferentes (‘onde’ = lugar em que; ‘aonde’ para um lugar; ‘donde’ = de um lugar) não se deu rapidamente entre os escritores, e a partir do século XVI. Por isso, aparecem com frequência como sinônimos nas indicações de repouso e movimento as três formas ‘onde’, ‘aonde’ e ‘donde’.
Camões, que foi um disciplinador da língua literária do seu tempo, oferece em ‘Os Lusíadas’ exemplos desta sinonímia na ideia de repouso: “Viram todos o rosto aonde havia” (V, 62, 1); “Até bem donde o sol não muda o estilo” (VII, 61, 6); “Onde o governo está da humana gente”.
Parece que o nosso dicionarista Morais (1813) tentou diferençar, reservando ‘onde’ para a noção de repouso e ‘aonde’ para a de direção (‘onde moras’ e ‘aonde te diriges’), lição que os gramáticos hoje recomendam. A verdade é que os escritores, ainda os mais atentos ao bom uso da língua, até hoje nem sempre fazem a distinção.
No português contemporâneo, ‘donde’ ou ‘de onde’ se vai especializando para a ideia de procedência, de origem, de ponto de partida: ‘Donde vens?’, ‘De onde partem os boatos?’. Na noção de direção, ao lado de ‘aonde’, usa-se ‘para onde’: ‘A cidade para onde me dirijo fica muito distante daqui.’ A forma reforçada ‘adonde’, viva na língua falada, vai perdendo frequência na língua escrita mais cuidada.
Também tem história no idioma português a palavra ‘até’, usada como preposição, na indicação de limite (‘O fogo foi até o banheiro, não passando para a cozinha’), e também usada como partícula de inclusão, valendo por ‘inclusive’ (‘Até o melhor aluno foi repreendido’).
A partir do século XVII, procuraram os usuários do português fugir à ambiguidade ou duplo sentido que poderia ter uma frase do tipo ‘O fogo chegou até a cozinha’, que poderia ser entendida de duas maneiras: a) limite, isto é, o fogo só chegou à cozinha, não passando daí; b) inclusão, isto é, o fogo espalhou-se pela casa toda, incluindo a cozinha, que normalmente é a última parte da casa. E um dos expedientes usados foi empregar depois do ‘até’ a preposição ‘a’, para caracterizar o ‘até’ como preposição, na ideia de limite: ‘O fogo foi até à cozinha.’
Iniciou-se este expediente com substantivo feminino, naturalmente porque, como o substantivo feminino vinha precedido do artigo feminino ‘a’, favorecia a crase da preposição ‘a’ com o artigo feminino ‘a’, fenômeno de que resultaria um ‘à’ pronunciado mais aberto. A maior abertura do timbre como expediente diferencial de unidades linguísticas se emprega, por exemplo, entre portugueses, para distinguir o pretérito ‘amámos, ‘démos’ do presente ‘amamos’ e ‘demos’. Entre brasileiros, não nos socorremos deste expediente fonológico, deixando a distinção a cargo do contexto ou com o emprego de advérbios de tempo (ontem, hoje; antes, depois, etc.). Depois se entendeu o uso da preposição ‘a’ com substantivo masculino, na mesma ideia de limite: ‘O fogo foi até ao banheiro.’
Com todos estes elementos, podemos explicar ao leitor que usamos no título “Até onde vai a competência” para seguir a boa lição dos gramáticos modernos, já que a preposição ‘até’ indica a situação limítrofe da competência junto ao simples ‘onde’. Como nesta acepção de limite a preposição ‘até’ pode ser reforçada com a preposição ‘a’ (‘até’ + ‘a’ + ‘onde’), então poderemos ter também a construção: ‘Até aonde vai a competência das academias’. Registrem-se os exemplos de ‘até aonde’: “(…) irei até aonde me levar o último resto (…)” (Euclides da Cunha, ‘Correspondência’); “(…) até aonde iria a coragem dele” (Carlos Drummond de Andrade, ‘Contos de Aprendiz’).
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