Escritora luso-angolana Yara Monteiro apela a “olhar descolonizado” sobre a mulher africana

Lisboa, 08 mar 2023 (Lusa) – A escritora luso-angolana Yara Nakahanda Monteiro apelou hoje a “um olhar descolonizado” sobre os direitos da mulher africana, apontou fragilidades dos movimentos feministas e diz que em Angola a maioria das mulheres ainda “carregam a pátria”.

“É preciso olhar para a mulher [africana] com um olhar descolonizado, a partir de África”, afirmou a autora, entre outros títulos, do romance, “Essa Dama Bate Bué!”, considerando que não se pode tratar “dos direitos da mulher” sem existir “uma interação entre género, raça e classe social”.

Para a escritora, 44 anos, é, aliás, nesta ausência de interação na análise dos problemas das mulheres, que residem muitas das fragilidades dos movimentos em prol dos seus direitos.

“Muitas das fragilidades dos movimentos que lutam pelos direitos da mulher é exatamente porque ignoram estas interceções”, criticou, citando como um exemplo disso o movimento sufragista: “As mulheres tiveram direito ao voto, mas só passado três décadas as mulheres negras puderam votar”.

E quando se olha para os direitos da mulher angolana, muito menos se podem ignorar esses aspetos, quando a maioria “carrega a pátria”, com muito esforço e sem apoios.

Na opinião de Yara Nakahanda Monteiro, o Governo angolano até “tem feito esforços, e implementado, ou pelo menos desenvolvido, instrumentos legais que promovem não só a igualdade, mas a equidade de género” – por exemplo, na legislação laboral as pessoas do sexo feminino estão protegidas por lei.

Só que isso é para as mulheres trabalhadoras com contrato de trabalho, de uma classe média e alta angolana, ressalvou, comentando que a maioria, as ‘zungueiras’ (vendedoras ambulantes) ou mesmo as empregadas domésticas, não têm esses direitos e “muitas vezes são perseguidas pelas autoridades”.

Para estas, a escritora não vê outra solução para defender os seus direitos que não passe primeiro pelo acesso a serviços básicos, porque nestes casos, considerou: “Estamos a falar de situações extremas e precárias de sobrevivência”.

Por isso, defendeu que em Angola “antes de se resolverem questões do foro laboral, têm primeiro de se resolver questões de acesso a serviço sociais básicos”, como educação, saúde e saneamento.

“Temos muito o hábito de olhar para estas questões da igualdade de género com um olhar ocidental em que muitas das necessidades básicas estão satisfeitas, o que neste caso não acontece”, frisou.

Até porque estas mulheres, as que não têm apoios e também contribuem para a economia angolana, embora em termos informais, “carregam a pátria”, acrescentou Yara, que as descreve num poema do seu livro “Memórias, aparições e arritmias” exatamente assim: “As costas da mãe são berço amoroso, leito de criança que adormece com o embalo que aquieta meu choro, minha mãe sempre sorri. Às costas leva a pátria”.

“Isto para mim é o símbolo da mulher angolana no século XXI, que é aquela que eu vejo todos os dias na ‘zunga’. Se isso me inquieta? Claro que sim. Tanto é que escrevi um romance dedicado à mulher angolana”, concluiu, questionando ainda: “Dar uma carteira profissional poderia ser uma solução [para estas pessoas], mas precisam de uma morada, e têm? E sabem ler?”.

A nível global, salientou que os direitos da mulher retrocederam nos últimos anos, “pela proibição do aborto nos Estados Unidos, pela falta de liberdade no Afeganistão, porque continuamos com as disparidades económicas”, e salários diferentes.

Yara Nakahanda Monteiro e a brasileira Helena Trevisan vão debater a literatura no feminino na Livraria da Travessa, em Lisboa, no próximo domingo, no âmbito das comemorações do Dia Internacional das Mulheres, uma iniciativa do FIBE – Fórum de Integração Brasil-Europa, com uma sessão do Duetos – Diálogos Além-Mar.

Mas, para Yara Monteiro, a literatura “feminina é um rótulo” que já não deveria existir e sim ser “eliminado”.

Numa conversa com a Lusa, a escritora considerou que deveria ser feita uma separação entre “quem escreve e a obra”. E “a obra vai além de quem a escreve”.

A escritora brasileira Helena Trevisan, autora, entre outros títulos, de “Luz de Néon”, por seu lado, realçou que, no final de 2022, “todos os prémios de maior envergadura” relativos a obras em língua portuguesa foram concedidos a mulheres, considerando que exemplos como este não sejam fortuitos.

“É, em si mesmo, um movimento importante e necessário da presença feminina, não apenas na cena literária, como no âmbito das artes em geral, do conhecimento científico, da política que se vem pronunciando com mais energia nos últimos anos”, afirmou a autora.

Para Helena Trevisan, há também “um espaço que se amplia para dar voz a escritoras trans, lésbicas, a mulheres pretas e que, assim, se enriquece”.

No entanto, “a menos que haja um propósito ativista numa narrativa ficcional, a expressão literária foi, é e continuará a ser a arte de contar histórias e de capturar o leitor para experiências íntimas, independentemente do género de que as escreveu”, sublinhou, numa resposta por escrito, a questões colocadas pela Lusa.

Para a autora brasileira, “uma mulher é sempre uma trabalhadora, estando fora ou dentro de casa”,

O Brasil, considerou, ainda enfrenta enormes desafios em matéria de direitos da mulher.

“São enormes os desafios de um país com as dimensões do Brasil. As diferenças regionais são marcantes, e a diversidade tamanha que a expressão cultural também acaba sendo riquíssima. A vontade, a esperança e o trabalho de cada um dos brasileiros é que as políticas públicas atendam a essa grande capacidade criativa e imaginativa que distingue o nosso povo”, frisou.

Até porque “ter voz é um privilégio”, comenta Helena Trevisan. A importância da representatividade é um tema recorrente também na escrita de Yara Nakahanda Monteiro, que escreve sobre o colonialismo e eco feminismo.

ATR // JH – Lusa/Fim

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