Macau, China, 10 mar (Lusa) – O escritor Luís Patraquim considerou hoje que estão a acontecer “delírios completos” com o português que não se verificam noutras línguas, exemplificando com a polémica que envolve o ensino da literatura portuguesa no Brasil.
“Como é que um brasileiro ou um moçambicano pode desconhecer Camões?”, disse, em entrevista à agência Lusa.
“Que eu saiba não há nenhum país da Commonwealth que retire Shakespeare [dos programas curriculares]. Não se pode, pura e simplesmente [fazer isso], ou então deixa-se de falar inglês, vai-se falar outra língua qualquer. Estão a acontecer delírios completos”, acrescentou.
A polémica surgiu depois de o Ministério da Educação brasileiro (MEC) ter apresentado uma proposta para reformular currículos escolares que indica que os alunos serão ensinados a ler e a apreciar textos literários tradicionais, da cultura popular, afro-brasileira, africana, indígena e outros povos, sem citar diretamente a literatura e os autores portugueses.
Num comunicado enviado à Lusa no final de fevereiro, o MEC garantiu não haver possibilidade de o estudo da literatura portuguesa ser abandonado no Brasil e frisou que o que pode acontecer é uma mudança na forma como esse conteúdo será apresentado.
“O estudo de obras literárias brasileiras deve ser realizado em conexão direta com a leitura e o estudo de obras clássicas da literatura portuguesa”, lê-se no comunicado.
Radicado em Portugal desde 1986, Luís Patraquim falou hoje à Lusa em Macau, onde participa no 5.º festival literário Rota das Letras, um encontro de autores lusófonos e de língua chinesa.
O poeta e jornalista moçambicano, que cresceu num ambiente multicultural, que incluía chineses naturais de Macau, indianos e gregos, considera que “há muitas maneiras” de aumentar a cooperação cultural, mas é preciso “vontade, interesse e visão política”.
Além de uma discussão sobre “aquilo a que se chama lusofonia”, que na sua opinião pode passar pela União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) ou pelo instituto Camões, Luís Patraquim sugere a criação de “uma itinerância” e “circuitos para a distribuição dos livros”.
“Não há mercado e depois há leis tão restritivas que não se chega a lado nenhum”, afirmou.
“Sabemos que, politicamente falando, estas coisas da cultura são sempre capas muito bonitas para os verdadeiros outros grandes negócios. A cultura é sempre o parente pobre das coisas, mas dá um verniz interessante”, considerou.
Nesse sentido, defendeu que “que a cultura, da música à literatura, também cria riqueza” e deu o exemplo da Suécia, onde viveu no final dos anos 1970 para escapar à guerra colonial.
“Na Suécia, a cultura é mais de 3% ou 4% do PIB e o PIB sueco não é pequenino, mas o mundo da língua portuguesa não tem essa perceção. Se é por aí que querem ir, se não lhes interessa grandes espiritualidades e grandes outras coisas, percebam também que dá dinheiro”, afirmou.
Para Patraquim, haver um “português moçambicano, angolano ou brasileiro” é “fatal como o destino”.
“Isso é da sociologia, da dinâmica das línguas, que não são coisas mortas. (…) Aí ninguém manda”, afirmou.
Constatando que a dimensão do português foi crescendo em Moçambique, desde a luta armada até aos programas de alfabetização no pós-independência, observou que a consolidação do português como língua de unidade nacional vem desde a guerra civil, mas que isso custou uma fatura “pesadíssima, de um milhão de mortos”.
“Decorrente da guerra civil, muitas populações tiveram de fugir e deslocaram-se para vilas maiores ou para centros urbanos, e já nasceram gerações a ter o português como língua materna. (…) Isso, de certa maneira, é mau porque é preciso ter esta referenciação [das línguas nacionais] para consolidar o próprio português”, disse.
“Porque pensar-se em rasurar as línguas todas seria um absurdo e até um ato imperial, seria um novo colonialismo”, adiantou.
FV (CYR) // VM
Lusa/fim
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