O argumentista Javier Gullón e o realizador Denis Villeneuve, que adaptaram “O homem duplicado”, de José Saramago, ao cinema, prepararam, na véspera da morte do escritor português, em 2010, uma lista de perguntas que o escritor “nunca chegou a ler”.
“Tínhamos lido o livro várias vezes, tomado muitas anotações e tínhamos uma lista de perguntas preparadas para o mestre”, explicou Gullón, depois da antestreia de “Enemy”, o filme inspirado em “O homem duplicado”, na Casa do Leitor, em Madrid.
“Estivemos reunidos, preparámos a lista, fui para o hotel, enviei um ‘email’ ao produtor. No dia seguinte, abri o jornal no computador e deparei-me com a notícia da morte de Saramago”, contou à Lusa, após a apresentação do filme.
Uma das perguntas, explicou, era o porquê da “opressão da sociedade que se deixava antever no livro”, algo presente noutros livros de Saramago.
As respostas nunca chegariam e, por isso, concluir o argumento foi “lançar-se ao vazio”, deixando em aberto, às interpretações do público, toda a simbologia do filme.
“Não queríamos contar apenas o argumento. O homem duplicado é mais profundo e gerou sensações de angústia, de vertigem, de sensualidade”, explicou Gullón, em conversa com a Lusa e durante a apresentação pública da obra, na capital espanhola.
“O nosso objetivo [argumentista e realizador] era alcançar as emoções que o livro nos tinha gerado e não tanto o livro em si. Por isso o desenvolvimento foi muito divertido. Porque seguimos muito mais as emoções e sensações do que, fielmente, o texto”, comentou.
O argumento teve aliás várias versões e até personagens do livro, como o “sentido comum”, que depois foram eliminadas.
Escusando-se, por exemplo, a fazer comentários sobre um dos símbolos mais marcantes do filme (uma aranha), Gullón insiste que “cada um pode e deve procurar as suas interpretações”.
Gullón diz que, desde o início, desde as primeiras reuniões com o realizador, o canadiano Denis Villeneuve, se sentiram “muitas coincidências” entre ambos, algo que facilitou o processo, “muito feliz, de desenvolvimento deste filme”.
Questionado sobre que outros livros de Saramago gostaria de adaptar ao cinema, Gullón destacou “os livros sobre o tema religioso”, nomeadamente “Cain” e “Evangelho Segundo Jesus Cristo”.
O argumentista manteve, depois da antestreia de Madrid, na noite de terça-feira, uma curta conversa com a viúva de Saramago e presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Rio, e com o público.
“Talvez não encontrem o livro, mas José Saramago está dentro deste filme”, disse Pilar del Rio.
Explicando que o Nobel da Literatura nunca foi fã de levar a literatura ao cinema, Pilar del Rio disse que a única condição imposta por Saramago foi de que o filme “fosse uma adaptação totalmente livre” do livro.
“Queria que o livro suscitasse ideias noutros criadores”, comentou, considerando que “é muito inquietante”. “Depois de verem o filme espero que vão ler o livro, quem ainda não o leu, ou que o voltem a ler”, disse a viúva de Saramago.
Realizada pelo canadiano Denis Villeneuve, selecionado para o festival de cinema de San Sebastian, em setembro do ano passado, “Enemy” é uma coprodução hispano-canadiana, produzida por Niv Fichman, que também produziu “Blindness”, o primeiro filme adaptado de uma obra de Saramago.
“Enemy” foi apresentado em antestreia em Madrid , dez dias antes da chegada às salas espanholas, marcada para 28 de março. A estreia portuguesa deverá coincidir com o aniversário da morte de José Saramago, 18 de junho, estando prevista uma exibição na véspera.
O filme foi este ano o principal vencedor dos prémios canadianos do ecrã, conquistando cinco das dez categorias em que estava nomeado, incluindo melhor realização, melhor montagem, melhor cinematografia, melhor música e melhor atriz secundária, Sarah Gadon.
Os produtores descrevem o filme como um “thriller” erótico que explora a mente de um homem em crise.
Adam é um professor que leva uma vida monótona até que descobre a existência de Anthony, um ator de pouco relevo que é fisicamente igual a ele.
Nos papéis femininos, destacam-se Sarah Gadon, Mélanie Laurent e Isabella Rossellini.
O ator norte-americano Jake Gyllenhaal, conhecido por “O Segredo de Brokeback Mountain”, que já tinha filmado “Raptadas” com Denis Villeneuve, é o protagonista de “Enemy”.
No livro, Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, descobre que tem um sósia chamado Daniel Santa-Clara, um ator de filmes de categoria B, facto que o leva a questionar a sua identidade.
ASP // MAG – Lusa/Fim
Foto extraída de Omelete