Que acrescentar sobre Eduardo Lourenço a tanto que nos dias subsequentes à sua morte encheu páginas e páginas da comunicação social e volta de novo a encher nesta celebração do centenário do seu nascimento? O pensador teria sorrido de alguns exageros pois manteve sempre um muito saudável sentido de humor, e certa distância sobre o que acerca da sua obra ia sendo dito ou escrito.
Por mim, apareci citado na primeira página de um jornal a abrir um artigo cujo título, pelo contexto, implica ser minha a afirmação de que Lourenço teria “decifrado o enigma português” (Jornal i, 2 de Dezembro de 2020). Por isso fui aparecendo por aqui e por acolá, até no Courrier International de Paris, como responsável por essa declaração. Entrei assim, sem culpa, na lista dos que nas redes sociais foram açoitados pelo seu aproveitamento da morte do grande ensaísta para dizerem imbecilidades. A verdade é que o jornal nem me entrevistou, embora as citações minhas incluídas nesse artigo tenham sido retiradas de um texto autêntico, por mim lido em Paris num colóquio de homenagem (“Eduardo Lourenço: existo, logo penso”), depois incluído no meu livro Despenteando Parágrafos (Quetzal, 2015).
Nada a fazer. Com a multiplicação exponencial nas redes, estou definitivamente colado à bombástica frase. A esclarecer a minha posição, direi que Eduardo Lourenço foi de facto, nos últimos 50 anos, o mais destacado (e também o mais mediático) intérprete de Portugal. Não direi, todavia, que decifrou Portugal porque ninguém consegue tal proeza a respeito de nenhum país. Há insondáveis mistérios nos comportamentos individuais e coletivos que escapam ao bisturi dos mais sagazes estudiosos e observadores. Lourenço conseguiu, no entanto, ir bem longe na análise do caso português porque aliou ao seu próprio olhar, perspicaz e penetrante, observando o país alternadamente de perto e à distância, uma atenta e profunda leitura dos melhores autores que, direta e indiretamente, no passado se entregaram a essa mesma tarefa. Lourenço era um ruminante insaciável. Lia, escutava, auscultava, via, depois processava interiormente, absorvendo o essencial, o que lhe parecia mais fundo. Quando depois falava ou escrevia, tudo lhe fluia num discurso perpassado de uma emotividade que ele incutia em tudo, num estilo carregado de dimensão pessoal onde se entretece uma linha direta entre o cérebro e o coração. Poderíamos atribuir-lhe como sua uma frase parafraseando Fernando Pessoa que ele tanto admirava e sobre quem tão lucidamente escreveu: O que o meu cérebro sente está escrevendo.
Eduardo Lourenço tinha uma intuição aguda. Costumo definir a intuição como a capacidade de ver acertadamente antes de se ter ou de se produzir provas. É um olhar subtil sobre a realidade que permite conetar pontos e detetar o que escapa a outros. Lourenço juntava a esse dom uma expressão literária reveladora de profunda sensibilidade poética. Era um apaixonado por poesia embora só a tenha escrito em prosa. Tudo isso ajudou a catapultá-lo para a ribalta nos anos a seguir ao 25 de Abril em que os portugueses andavam em busca de rumo, e se interrogavam sobre quem eram ou qual o lugar que ocupavam afinal na história quando um percurso de 500 anos foi abruptamente interrompido. No meio do tumulto, a voz de Eduardo Lourenço surgiu reflexiva e serena convidando-nos a olhar para dentro de nós, para o fundo da nossa consciência coletiva à procura de auto-entendimento.
Eduardo Lourenço nunca se considerou nem filósofo nem tãopouco historiador. Usou o seu treino em filosofia e a sua propensão intelectualizante para reler as páginas mais clássicas da nossa história, do ponto de vista de um português dos quatro costados que saltitava entre a modernidade francesa e um Portugal que saía repentinamente do passado onde se fechara, e agora se pressentia à deriva, sem atinar com o melhor caminho para o futuro.
Ensaísta acima de tudo, o caso mais próximo do seu terá sido o de António Sérgio, na geração. anterior (apesar de Lourenço se ter explicitamente demarcado dele –vide “Sérgio como mito cultural”, em O Labirinto da Saudade). Sérgio era também ensaísta e detentor de uma perspetiva consistente sobre Portugal – tendo elaborado uma leitura da história portuguesa solidamente arquitetada e fundamentada. Tratava, porém, de uma forma mais parcelar os seus temas, que focam questões históricas específicas, e lidava bastante com dados empíricos. Lourenço, em contrapartida, desenhou uma visão larga, de floresta, de preferência a uma análise minuciosa de árvores. Ele integra na sua visão da história a totalidade da vida de um povo na sua dimensão cultural. Baseado nos pressupostos de uma filosofia da história, faz filosofia da cultura portuguesa, ou o que poderíamos talvez classificar como uma fenomenologia da cultura portuguesa através dos tempos (tendo em conta a tradição filosófica em que se formou), agarrando os momentos mais significativos dela nos domínios da política e das manifestações sociais sobremodo relevantes, interessando-se em particular pelas tendências comportamentais que indiciam ou refletem os valores, os mitos, as aspirações mais profundas da coletividade nacional. Por outras palavras, Lourenço investe em regra em traços de estruturas de fundo que devem ser entendidas à luz de uma reflexão filosófica, expressa nos seus escritos mais teóricos, incluindo aqueles onde se debruça sobre literatura. Esta, entende-a como uma das mais elevadas criações de uma comunidade por, na sua produção escrita, um povo refletir muito do seu mais profundo modo de estar. Para Lourenço, as culturas – e a portuguesa em especial – projetam-se nos respetivos imaginários literários (é, ao menos em parte, nesse sentido que podemos interpretar o título de uma sua entrevista publicada em forma de livro: A História é a Suprema Ficção). A literatura (e não apenas a ficção narrativa, mas a poesia também) constitui, portanto, um lugar privilegiado para a captação dos momentos culturalmente reveladores de umaidentidade. Parece ser de facto essa a tarefa que Lourenço levou a cabo no seu clássico O Labirinto da Saudade. Essa coletânea de ensaios, previamente publicados de modo disperso em lugares diversos, fez eco entre o público português (pelo menos o público leitor de livros, jornais e revistas), que em grande parte se reviu no retrato esboçado por Lourenço. Acrescente-se que, muito embora o ensaísta se empenhasse em captar, algo intuitivamente, o inconsciente nacional português, o termo ‘psicanálise’ incluído em subtítulo parece deslocado, na medida em que as reflexões de Lourenço pouco devem a Freud, antes se filiam sobretudo em leituras atentas e acutilantes dos autores da “geração de setenta”, em especial Eça e Antero, e, em matéria de história, sobretudo em Oliveira Martins. (“Vieira e Oliveira Martins, cada um à sua maneira e às vezes na mesma, são os psicanalistas da pátria”, escreveu Lourenço em (Situação Africana e Consciência Nacional, p. 22). Como outro exemplo da preferência de Lourenço pela elaboração de traços estruturantes, sirva uma afirmação em entrevista de há poucos anos. Segundo ele, do ponto de vista cultural e político, a visão do mundo predominante na França foi adotada pela nossa elite, mas não pelo conjunto da sociedade portuguesa (Ler, nº 138, Verão 2015, p. 33). Esse tema desenvolveu-o, aliás, no ensaio “Portugal-França ou a comunicação assimétrica”, incluído no volume Nós e a Europa, ou as duas razões, uma outra coletânea que ajuda também a configurar o retrato português e ibérico (de novo próximo de Oliveira Martins) face à Europa (à França, sobretudo).
Note-se, a propósito, que em outros escritos Lourenço estabeleceu outras comparações, desta feita com o mundo anglo-americano. A distinção atrás estabelecida entre a elite e as massas era importante para o ensaísta, na medida em que ele reconhece dois níveis distintos de portugueses: a elite educada, que seguiu e procurou imitar a França, em especial a partir do século XIX, e a população em geral que permaneceu arraigada a vivências com raízes ancestrais (captadas, por exemplo, por autores tão diversos como Oliveira Martins em textos históricos, e Teixeira de Pascoaes na poesia), e que resistiram a qualquer assimilação para além de superficiais modernizações externas, algumas das quais meramente epidérmicas.
A visão histórica de Lourenço é expressa sempre num registo valorativo, por oposição a uma narrativa analítica, distante, empírica e neutral; ela é consistentemente crítica, contrapondo a mundividência do pensador às realidades históricas com as quais se confronta, nunca se coibindo de emitir juízos de valor, deixando claro que o move uma profunda paixão por Portugal, exacerbada pelo facto de o ter observado, estudado e vivido à distância; de ter tido de explicá-lo a estrangeiros, de ter tido a saudade dos ausentes que residiam na sua. pátria, enquanto ele próprio vivia fora. Em resumo, uma visão complexa da história portuguesa, avessa a qualquer simplificação (incluindo esta minha tentativa de síntese) e dispersa numa miríade de escritos ainda longe de serem integralmente coligidos em volume, mas que nem por isso deixam de refletir uma das mais coerentes interpretações de Portugal, animada por aquilo que Max Weber definiu como Verstehen: uma compreensão sentida por dentro. Exageros de elogios não favorecem um homenageado. Mas a verdade é que Lourenço mergulhou no Portugal profundo através da escrita de clássicos portugueses e lhes acrescentou as suas muitas e perspicazes reflexões, penetrando nas obras deles e aprofundando assim a nossa autognose.
Como escrevi noutro lugar, Eduardo Lourenço não era Arostóteles, era Platão. Não era Descartes, era Pascal. Não era Nietzsche, era Kierkegaard. Herdou uma metafísica do universo essencialmente moderna, tendo, como Nietzsche, compreendido a sua dimensão trágica. Nunca, porém, desistiu de uma réstea de esperanca no mistério do ser-se humano, mistério que ele explorava no contexto especial europeu – o espaço cultural onde se sentia melhor, e onde o deixavam ser um português ibérico em busca de lugar na sua casa do ser.
Estas ideias avulsas, impulsionadas pela leitura de muito do que, logo após a sua morte, se escreveu acerca de Eduardo Lourenço (e, admito, pelo desejo de colocar alguns dos meus pontos nos ii) não fazem justiça ao conjunto da sua obra; todavia não faz sentido voltar a repetir aqui o que sobre ele escrevi noutros lugares. Gostaria, porém, de terminar estas breves notas sublinhando um aspeto que ficou bem manifesto nas reações surgidas e que continuam a surgir nos meios de comunicação social: a força inspiradora que a obra deste extraordinário homem teve e continuará a ter sobre tantos e tantos leitores, entre os quais me incluo. Na verdade, a melhor homenagem que os portugueses podem prestar a Eduardo Lourenço será ler essa extensão do pensador que continua viva: a sua obra. Nenhum outro desidério seu terá sido mais intenso. E, daqui para diante, o proveito não será mais seu, mas tão-só dos seus leitores.
Onésimo Teotónio Almeida
Onésimo Teotónio Almeida
últimos artigos de Onésimo Teotónio Almeida (ver todos)
- “Diálogos Lusitanos” nas livrarias - 24 de Setembro, 2024
- … ainda a morte de Eugénio Lisboa - 10 de Abril, 2024
- Eugénio Lisboa – mais um amigo que se vai - 9 de Abril, 2024
- Correntes d’Escritas - 6 de Março, 2024