A virulência do artigo é tanta que o seu título é Inguinorança e compara “erro de português” a crime de assassinato: “Tal como matar alguém viola uma norma, matar o idioma viola outra”. Ruy Castro, também na mesma Folha, liberou os artistas para serem criativos com a língua, mas chamou os linguistas de “meros funcionários” da mesma, como se estes quisessem modificá-la.
Linguistas responderam ao artigo: Sírio Possenti, colega aqui de Terra Magazine, provou que o livro do MEC não é resultado de uma conspiração comunista, e Marcos Bagno demonstrou que a “inguinorança” foi mesmo de Rossi e Castro, que desconhecem a natureza científica da Linguística e não diferenciam língua escrita de falada, apenas pra começo de conversa.
Pra começo de conversa, não sou linguista, mas, como bem diria Didi Mocó, no seu cearense peculiar, também dou “minhas cacetada”. Cursei Letras na Universidade Federal da Bahia e me lembrei da primeira aula a que assisti, ministrada por um outro Rossi, o professor Nelson Rossi, já na época uma sumidade nesses assuntos (*), e que, naquele ano de 1982, escolheu pegar uma turma de calouros que não tinha ideia do que aquele homem representava. Ele iniciou a aula esclarecendo que falava baixo por estar com problemas na garganta, mas, mesmo em condições normais, não aumentaria o volume da voz.
Calvo, de óculos e barba longa, sempre de branco, o professor colecionava idiossincrasias como, em feriados facultativos – quando se escolhia ir ou não ao trabalho, mas, na verdade, se fechava o Instituto de Letras -, pular o muro da Faculdade para não ser impedido de trabalhar. Foi o que ele me disse, tempos mais tarde, numa conversa no pátio do instituto. Outra de suas opiniões era a de que o vestibular tinha que ser realizado por sorteio, e a literatura não era para ser estudada, só tendo razão de existir para o nosso deleite.
O que me marcou, no entanto, naquela primeira aula – e acredito, a muitos outros que a assistiam -, foi um pequeno pedaço de papel, distribuído a todos por Rossi, que continha apenas uma frase numa língua desconhecida pra nós. A língua, nos foi revelado pelo professor, era um dialeto do português chamado, se bem me lembro, de Aljamia , o que demonstrava “a unidade na diversidade e a diversidade na unidade” da nossa língua. Entrávamos na universidade com o pé direito, as provas de Rossi eram à base de consultas, com questões que nós mesmos elaborávamos, e, a partir daquele momento, não estávamos ali apenas pra aprender a gramática normativa, mas, sim, para também criticá-la em nas matérias da disciplina Língua Portuguesa e, ainda, de Linguística.
Aprendemos que havia várias normas convivendo na mesma língua. Se, por exemplo, a população da cidade de Jequié – minha terra natal – comumente não utilizava “você”, preferindo o “tu”, sem flexionar o verbo na segunda pessoa – “tu vai” -, não era errado. Era apenas a norma daquela região, diferentemente da de Salvador, a capital, onde se usava o “você”. Quando cheguei, com dez anos de idade, à Cidade da Bahia, fui vítima de preconceito linguístico por falar “tu vai” e acabei me acostumando com o “você vai”, mas, até hoje, com pessoas da minha cidade e do meu afeto, utilizo o “tu”, afirmando minha identidade “jequietcong”.
Ao ler o texto de Clóvis Rossi, que não se conformava com a defesa, no livro do MEC, da forma “os livro”, revi meus professores, que diziam que o falante de “os livro” estava sendo até mais econômico. Se, no artigo “os”, já tem a marca de plural, colocá-la também no nome “livro” não deixa de ser uma redundância. A gramática normativa, com suas regras de antanho, tentava fazer crer aos falantes que a língua é estacionária, quando, na verdade, os próprios falantes, e não o texto gramatical, é que a constroem, criativa, viva e mutante, no dia-a-dia, no bate-papo e afins. A norma culta é considerada “culta” por razões extralinguísticas, de ordem política, social e econômica.
Nem por isso, deixei de escrever, como neste texto, na norma culta, ainda que informalmente. Mas estar atento para o que está por trás do naturalizado me fez mais forte e menos ignorante, ao contrário do que pensa Clóvis Rossi. Reconheço, no entanto, a dificuldade da maioria – que se considera culta – para aceitar o que parece estar fora do senso comum, o que é uma mostra de como é importante, desde cedo, informar aos alunos de que há vários falares, legítimos e criativos.
Não é preciso ser especialista pra saber. Noel Rosa, gênio da raça, no sambaNão tem tradução, cantou “tudo aquilo que o malandro pronuncia/ com voz macia, é brasileiro/ já passou de português”, antecipando uma corrente de linguistas que defende a existência mesmo de uma língua brasileira, distinta não apenas no léxico, mas em vários aspectos de outros níveis estruturais, da mãe lusa. Segundo o cartunista e compositor Nássara, para Orestes Barbosa, letrista doChão de estrelas, Noel era o maior poeta popular do Brasil, só por conta dos versos citados acima.
Quanto ao professor Nelson Rossi, após ter se aposentado, fiel aos seus princípios, não pisou mais no Instituto de Letras e se recusa a falar desses assuntos. Reza a lenda que ele se dedica à natação e ao violão. Professor, antes de frequentar suas aulas, eu já tocava violão, e dou minhas braçadas diariamente, ao encontro de Iemanjá, na praia do Porto da Barra. Qualquer coisa, tamos aí.
(*) Em 1963, Nelson Rossi e outros publicam o “Atlas Prévio dos Falares Baianos”, primeiro estudo a tratar de forma sistemática a variação horizontal ou geográfica do português brasileiro; em1969 , Nelson Rossi, da UFBA, e pesquisadores de mais quatro universidades dão início ao “Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta do Brasil”, primeiro grande projeto a investigar a variação vertical ou sociolinguística do português brasileiro. – as informações desta nota foram prestadas por Tânia Lobo, que também assistiu à aula de Rossi de que fala o texto, e tornou-se doutora na área de Língua Portuguesa.
FONTE: Terra Magazine; Web site desta imagem jasmimecanela.blogspot.com