SOCIEDADE HISTÓRICA DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL PORTUGUESE HERITAGE SOCIETY
Gabinete do Presidente
Discurso do Presidente da Direcção José Ribeiro e Castro Cerimónias oficiais do 1.o de Dezembro Lisboa, Praça dos Restauradores
1 de Dezembro de 2022
Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhora ministra da Defesa Nacional,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Senhora Procuradora-Geral da República
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Senhores Chefes do Estado-Maior dos ramos das Forças Armadas,
Senhor Dom Duarte Pio, Duque de Bragança, em cuja pessoa saudamos as três dinastias portuguesas e toda a História de Portugal,
Senhoras e Senhores Embaixadores,
Senhora Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Senhores Vereadores,
Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Senhores dirigentes associativos,
Demais autoridades civis e militares,
Portugueses,
Manhã cedo, quando vinha para aqui (vinha a pé), cruzei-me, ali no Marquês, com uma senhora já entrada, uma rapariga da minha idade, que se aproximou e interpelou-me:
– Olhe! Desculpe… O senhor não é o Ribeiro e Castro das bandas? – Sim, sou o Ribeiro e Castro das bandas. Porque é que pergunta?
– Porque é hoje. O desfile das bandas, o 1.o de Dezembro. Sei muito bem. E o que anda aqui a fazer a pé a esta hora?
– Então, vou lá para baixo, para o 1.o de Dezembro.
– Para o 1.o de Dezembro? Mas isso é mais logo, as bandas são à tarde.
– Está bem, mas o 1.o de Dezembro não é só bandas. Agora, há as comemorações oficiais.
– Ah, é? E o que é que vai lá fazer?
– Olhe, minha senhora, eu vou para os 900 anos de Portugal.
– Ah! Que engraçado! E o que é que tem o 1.o de Dezembro a ver com os 900 anos de Portugal?
– Tem tudo. (e expliquei)
Se Portugal não se tem formado há 900 anos, não haveria nada para restaurar naquele dia 1 de Dezembro. E não havendo nada para restaurar, não teria havido 1.o de Dezembro. Farto- me de dizer isto. Por outro lado, se não tivesse havido o 1.o de Dezembro, nós também não teríamos agora 900 anos de Portugal para festejar. Teríamos acabado ali. Não teríamos chegado até hoje. Farto-me também de dizer isto. Por isso, o 1.o de Dezembro tem tudo a ver com os 900 anos de Portugal e os 900 anos tudo a ver com o 1.o de Dezembro. Digo-lhe mais: o 1.o de Dezembro tem tudo a ver com cada dia de Portugal. Cada dia que somos livres, próprios e independentes, isso tem tudo a ver com o 1.o de Dezembro.
Naquele dia de 1640, o que aqueles homens sonharam foi o mesmo Portugal antigo de Afonso Henriques. Ou o Portugal de D. Dinis, que nos fundou a Universidade, nos deu a nossa língua como língua oficial e fundou a marinha, que, anos mais tarde, nos levou mar afora, levando a língua por todo o mundo. Ou o Portugal do Mestre de Aviz e Nuno Álvares, bravos, a defender a nossa independência. Os homens de 1640 quiseram resgatar o país livre de 500 anos antes, porque esse país tinha uma história antiga e a sua gente formara um carácter e uma identidade que valiam muito a pena. Se não merecesse a pena, não teriam tido o arrojo, a ousadia, a coragem, nem sequer a ideia da Restauração. Era até preciso essa memória ser muito forte para 60 anos de rei estrangeiro não a terem apagado, nem adormecido, nem corrompido. Por isso, o 1.o de Dezembro deve tudo a Afonso Henriques e a todos os que, depois dele, nos fizerem.
A senhora interrompeu:
– Ó Sr. Ribeiro e Castro, mas para isso dos 900 anos ainda falta muito…
– Olhe que não! A Batalha de S. Mamede, primeiro grande marco do ciclo da fundação, foi em 1128. Faz 900 anos já em 2028, daqui a cinco anos e meio.
– Ah! Sim, na verdade… – concordava a senhora.
E eu continuei, no meu entusiasmo:
– Aliás, antes disso. em 1125, Afonso Henriques, muito jovem (com 14 ou 16 anos) arma-se a si mesmo cavaleiro, na Catedral de Zamora, mostrando claramente a vontade de ser rei. E eu creio que, embora anterior ao ciclo da fundação propriamente dito, este é um facto preparatório da maior importância de que nós já deveríamos celebrar os 900 anos, em Zamora, no Domingo de Pentecostes, em 2025. Está já aqui a melodia, o tom dos nove séculos de Portugal. Olhe, minha senhora: aqui entre nós, eu até penso que devíamos convidar o nosso Presidente da República para lá ir a Zamora nesse dia. Que lhe parece?
– É boa ideia. Nem fica longe, é ali ao lado de Bragança. Eu até acho que o Presidente é capaz de gostar. Ele gosta muito dessas coisas. E era bonito.
Depois, a senhora saltou na nossa conversa:
– Ó Sr. Ribeiro e Castro, e esse seu ciclo da fundação quando é que acaba?
– Há ainda as grandes datas de Ourique, em 1139, e da nossa independência em Zamora, em 1143. Mas o ciclo fecha com o reconhecimento internacional de Portugal e do nosso Rei, pelo Papa Alexandre III, numa bula de 1179.
– 1179!? Ó Sr. Ribeiro e Castro, isso é muito longe, credo! Eu não estou cá nesses 900 anos. Nem em 2043, se calhar, quanto mais em 2079!…
– Está certo, mas o facto de não estarmos lá, não quer dizer que não saibamos que o ciclo que começa em 28 acaba em 79. Cada um trata do seu tempo, mas sabemos qual é o tempo completo. Olhe, diga-me uma coisa, minha senhora: tem netos?
– Tenho dois. Uma tem 16 anos e outro 17.
– Então, já não vai ver os seus netos fazer 70 anos, que é mais ou menos a idade por onde nós os dois andamos. E, por causa disso, não sabe que, se Deus quiser, eles irão fazer 70 anos no seu dia, apesar de não estar cá para ver? Mais: não seria capaz de escrever, agora, uma carta dirigida a cada um dos seus netos para lhes ser entregue no dia dos 70 anos, com as palavras de ternura da velha avó?
– Ó Sr. Ribeiro e Castro, não me faça chorar. Mas está a dar-me uma boa ideia. Eu andava mesmo a querer escrever-lhes, não era coisa para já. Gosto tanto deles.
E rematou:
– Vá lá ao seu 1.o de Dezembro, que eu também tenho de ir à minha vida. Calhando, ainda nos vemos nas bandas, logo à tarde.
Senhor Presidente da República,
Portugueses,
Bem-vindos ao feriado dos feriados. Muito obrigado por estarem aqui, no dia de Portugal por natureza das coisas, num dia de Sol, cumprindo o protocolo de que nunca chove no 1.o de Dezembro. O 10 de Junho é um dia importantíssimo, o Dia de Portugal no sentido do Portugal universal, da Portugalidade, nomeado na esteira do nosso maior poeta, Luís de Camões. O 1.o de Dezembro é outro Dia de Portugal: o Dia de Portugal porque sim, o Dia de Portugal porque somos, o Dia de Portugal porque queremos ser livres e independentes – o dia em que mais aprendemos a dar tudo por Portugal, a gostar muito de Portugal.
Aquela visão dos 900 anos é uma ideia poderosa a que temos dedicado, na Sociedade Histórica, muita reflexão nos últimos meses. Olhando os nossos Estatutos e carta de missão, é a nossa vocação principal.
Acredito, na verdade, que se avizinha rapidamente um período de 50 anos, em que sopra a inspiração dos 900 anos de Portugal. E a inspiração que sopra desse período é um vento bonançoso, um vento de confiança, que devemos saber aproveitar para a afirmação europeia e mundial de Portugal (são muito poucos os que têm 900 anos) e para a mobilização positiva, enérgica, motivada, das capacidades dos portugueses e o fermento da nossa ambição colectiva, a fim de vencermos os desafios que temos pela frente. Nós não vamos a parte nenhuma sem ambição de propósito e sem exigência sobre nós mesmos.
Se nós, numa parte importante dos nossos 900 anos, fomos os primeiros da Europa no mundo, como não seremos capazes não digo de sermos o primeiro da Europa, mas de estarmos solidamente no grupo da frente e claramente acima da média?
Os marinheiros costumam dizer: “nau sem rumo nunca tem vento favorável”. Nós não temos competência quanto ao rumo. Esta é competência do Senhor Presidente, do Senhor Primeiro- Ministro, do Governo, constitucionalmente mais do Senhor Primeiro-Ministro e do Governo. Mas nós podemos dar vento favorável, queremos muito dar vento favorável.
Queremos que as velas se enfunem e nos empurrem na realização dos nossos sonhos, na concretização dos nossos propósitos, no ir até mais além do que julgávamos ser possível, dando, com saudades do futuro, novo sentido aos célebres versos iniciais de Camões: “Por mares nunca dantes navegados/Passaram ainda além da Taprobana.” Quando, com rumo certo, o vento soprar, não há Taprobana que nos pare.
Dêem-nos rumo certo, que nós daremos o vento favorável.
Não devemos esquecer nada, esconder nada. A História serve para, conhecendo tudo, aprender; e, aprendendo, guardar o bem que levamos connosco, trancar o mal que deixamos atrás para não repetir. Não temos cultos supremacistas, não temos cultos inferioristas. Nós somos o que somos e gostamos do que somos. Nós gostamos muito de Portugal. Era absolutamente improvável que cerca de 1 milhão de pessoas, na época áurea dos Descobrimentos, realizasse o que nós fizemos e fosse, hoje, o titular fundador da terceira língua europeia global, quinta língua mundial, língua mais falada do hemisfério Sul.
Queremos saber tudo de nós e da relação com outros que também nos pertencem. Queremos saber tudo, desde a amizade forjada em Coimbra entre D. Afonso Henriques e Yahia Ben Yaish, que o ajudou em vários feitos, como a conquista de Santarém, que o rei designaria o primeiro rabino de Portugal e que simboliza a relação fundadora com a comunidade judaica sefardita de Portugal. Queremos saber tudo dos portugueses do Oriente, que têm das histórias mais raras e extraordinárias das nossas deambulações por Além-Mar. Queremos saber tudo das nossas relações africanas, com povos e gentes que estimamos tanto, e da construção do Brasil, essa âncora formidável da nossa língua nas Américas. Queremos saber tudo da diáspora, desde o ukelele do Hawai aos CEO de grandes empresas, passando por vultos da ciência e da cultura e pelos cidadãos anónimos, que prosseguem individualmente pelo seu mérito pessoal a sementeira portuguesa pelo mundo que começou com a primeira caravela que saiu aqui do Tejo.
Preparar seriamente os 900 anos de Portugal, com o espírito aberto e largo que defendo, é o ambiente mais favorável ao nosso progresso e desenvolvimento acelerados em todas as áreas. Costuma falar-se muito de “custos de contexto”, complexa adversidade. Os 900 anos são “adubo de contexto”, um acelerador favorável. O selo dos 900 anos é um selo de prestígio, a que temos de associar também uma marca de responsabilidade e exigência sobre nós próprios, como já disse.
O chamamento já está aí, apenas à espera de que o escutemos e lhe demos sentido útil. Dou um exemplo simples. É frequente os CTT pedirem-nos sugestões de efemérides redondas que possam inspirar as suas séries filatélicas do ano seguinte. Neste ano, aplicámo-nos; e tivemos a boa notícia, há poucas semanas, de saber que quase todas as nossas sugestões foram aceites. No próximo ano, teremos, assim, os nossos selos a assinalar o 5.o centenário da Casa dos Bicos, o centenário do IPO, os 150 anos do grande fotógrafo Joshua Benoliel, os
centenários de quatro grandes figuras das nossas letras (Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Natália Correia). Mas aquilo que os CTT consideraram mais importante e a que dedicarão o chamado “Inteiro Postal” são os 9.os centenários dos forais do Porto e de Viseu, ambos dados em 1123, respectivamente, pelo Bispo D. Hugo e por D. Teresa (mãe de Afonso Henriques). Ou seja, as terras que nos fizeram Portugal já estão a comemorar 900 anos dos seus forais. Por isso, definimos o projecto “Forais da Fundação, Municípios de Portugal”, onde pretendemos congregar todos os concelhos que receberam forais afonsinos e, antes destes, já do período condal e da regência de D. Teresa. São essas as terras em que germinámos e crescemos portugueses. Aí está também Lisboa, com foral de 1179. Mas a primeira de todas é Guimarães, que recebeu foral do Conde D. Henrique, o primeiro foral de todos, antes ainda de 1096; e consideramos naturalmente que, independentemente da organização, este projecto deve ter liderança vimaranense, fazendo jus ao título “cidade-berço”.
No ciclo dos 900 anos, os factos onde concentramos as celebrações nonicentenárias assinalam-se em 2028, 2039, 2043 e, para os que lá estiverem, 2079. Mas, pelo meio, podemos assinalar outros centenários que têm a ver com a nossa liberdade, com a nossa identidade, com a formação do território e com a projecção universal. Refiro-me, por exemplo, à dobragem do Cabo Bojador (1434), ao 1.o de Dezembro (1640), aos 900 anos da conquista de Lisboa (1147), aos 750 anos da definição da língua portuguesa como língua oficial (1297/2047), à conquista do Algarve (1249), à descoberta das últimas ilhas dos Açores, Flores e Corvo (1452). Sejam estas ou outras as escolhas, há aqui muito para fazer, tirando destes acontecimentos, sob o selo comum dos 900 anos, o tal vento bonançoso de que falei. São ideias que têm de ser servidas com competência, com meios e com congregação de todas as instituições relevantes para atravessar a sociedade portuguesa por uma corrente inspiradora que é seiva inesgotável. Não conseguiremos fazê-lo com verbas do Estado em contínua decadência e que estão, desde há anos, reduzidas a uma subvenção orçamental anual de 5.000 euros, meio salário mínimo por mês. Na Sociedade Histórica estamos como o cavalo do escocês, que, treinado a viver sem comer, quando estava quase adestrado a não gastar palha, morreu. Mas, seja como for, acredito que este projecto será feito e tem de ser feito. Acredito que a História, além de ciência que importa respeitar por inteiro, não cedendo a qualquer charlatanismo, é também, como ciência e conhecimento, tesouro, recurso, esperança.
Os 900 anos já estão aí.
Senhor Presidente da República, Portugueses,
Duas breves palavras a concluir.
Há muito quem ache que o valor da independência nacional é coisa do passado. Ainda que nunca aderisse a essa tese, eu também tinha a tentação de pensar que episódios como o Cerco de Lisboa, a Guerra da Aclamação, as Invasões Francesas eram coisas impossíveis de acontecer depois da 2.a Guerra Mundial e sobretudo na nossa era de tanta ciência, tecnologia e direito.
Do outro lado da Europa, a Ucrânia sofre horrores e luta com bravura para defender e fazer prevalecer o mesmo bem que celebramos neste 1.o de Dezembro. Não posso, hoje, nesta tribuna, deixar de exprimir ao povo ucraniano e aos seus dirigentes uma forte e sentida palavra de solidariedade.
Ansiamos pela paz, o que o mesmo é dizer pela retirada completa das tropas de Putin. O mundo não pode dar o benefício ao invasor. Não é tolerável que Putin actue como Napoleão ou Hitler, usando não só a crueldade de que somos testemunhas, mas também um discurso de justificação intolerável, sobretudo para um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, digno dessa qualidade. Temos o maior respeito pelo povo russo e pela sua cultura, que são património europeu de primeira grandeza, como nós também. Lamentamos que os seus actuais dirigentes os enxovalhem e aniquilem o seu prestígio, ao invadirem um país vizinho e um povo irmão, na mira de os subjugar pela violência. O mundo tem de assegurar e defender, por todos os meios úteis à sua disposição (políticos, militares, diplomáticos) a independência nacional da Ucrânia e a liberdade dos ucranianos.
A última palavra dedico-a a Adriano Moreira, homem sábio, nosso companheiro e amigo, cujo centenário (já que falei em tantos) também passa neste ano.
Tivemos a alegria de celebrar os seus 100 anos, em vida, no passado 6 de setembro. Agora, evoco o centenário, com ele já partido, como é mais costume. Tenho muita pena. Tinha sonhado, se a sua saúde continuasse a melhorar, que o titular da cadeira n.o 1 do nosso Conselho Supremo pudesse estar aqui connosco, nesta celebração do 1.o de Dezembro, de que ele gostava tanto, e ser ovacionado por todos os que aqui estamos. Merecia.
Não pôde estar. E nós não podíamos querer que estivesse mais tempo connosco. Estava cansado.
De um dos seus últimos livros (“Este é o tempo”), cito dois trechos, que têm a ver com a responsabilidade e exigência de que falei e também com este tempo último de Adriano Moreira:
“Estou a chegar a um momento de prestar contas. Daí que eu pergunte se nós fizemos tudo o que era necessário para não termos chegado à situação em que nos encontramos. (…) Provavelmente não fizemos tudo o que estava nas nossas mãos.”
Depois, diz também:
“Atribuo muita importância à sobrevivência. Descobri que sobreviver é que é o grande purgatório. Quando reparamos que já não temos gente do nosso tempo. É muito difícil conviver com o desaparecimento de todos aqueles que foram da nossa geração. Estão a desaparecer, já não há os rostos que me acompanharam desde sempre. É doloroso! É um purgatório…”
Adriano partiu. E acredito que partiu do purgatório para melhor, junto de Deus da sua fé.
Claro que temos pena que não esteja aqui. Mas não temos saudades, porque está sempre connosco. Está connosco no muito que nos deixou, nos livros que podemos ler e reler e no amor a Portugal e ao saber que o guiaram em toda a vida pública e académica.
Gritamos o que Adriano Moreira gritaria connosco: Viva o 1.o de Dezembro!
Viva Portugal!