Uma conversa em dia de eleições leva-nos a Andorra e, depois, a um antigo país entre Portugal e a Galiza
Conversas proibidas em dia de eleições
A conversa começou na viagem de Ponte de Sor para Lisboa, ali pelo início da tarde de domingo, com uma certa pressa para chegar a tempo de votar.
Era normal que o assunto fossem as eleições. Íamos a ouvir a rádio e as notícias sobre uma qualquer personagem política que teria dito isto ou aquilo que podia ser ou não interpretado como apelo ao voto. A CNE lá interveio, como tinha de ser — ou não.
Perguntávamo-nos, por essas estradas alentejanas fora, em direcção ao sul (sim, há uma grande parte do Alentejo que fica a norte de Lisboa!): por que razão é preciso impedir a campanha durante o dia das eleições? Sim, eu sei que é normalíssimo em Portugal e já nos parece para lá de discutível, mas pensem lá: qual é o problema de falar de política no dia das Eleições? Que vantagem nos traz?
A única razão que me ocorre é esta: é bom dar uma certa solenidade ao acto e, talvez, manter uma certa ilusão de imparcialidade entre todos os envolvidos nos actos eleitorais. Tirando isto, não sei o que vos diga. Porquê, Deus meu, havemos de estar calados sobre aquilo que estamos a fazer naquele preciso momento? Será que se eu for votar e disser: «VOU VOTAR EM X!» estou a interferir nos direitos dos meus concidadãos? Em que sentido? Se durante as duas semanas anteriores não se fez outra coisa, porque não podemos fazer isso mesmo nesse dia?
Dizem-me: é preciso reflectir. Que seja. Mas à força? Não podemos reflectir na cama? Com auscultadores? Ou até no meio da rua? Será que a coisa funciona assim: os portugueses recolhem todas as informações, fecham-se então em casa e comparam notas no dia anterior ao acto eleitoral. Será isso? Não, não é. Não sendo, para quê uma lei destas?
Como usar países minúsculos para contornar a lei
Ora, mas nada disto interessa agora. O que interessa é ver como as conversas são como as cerejas, lá diz o lugar-comum e eu confirmo. Pois estávamos a falar destas regras estranhas e lembrei-me que, em Espanha, reparei num jornal que contornou todas estas proibições de forma genial.
Como o El Periódico de Catalunya tem uma edição andorrana (El Periòdic d’Andorra), nesses dias de defeso eleitoral, as suas edições espanholas apresentam uma ligação em letras garrafais para a edição andorrana. Os leitores seguem a ligação e, na versão andorrana, têm acesso a todas as sondagens e informações sobre as eleições espanholas, sem qualquer limitação.
Porquê? Porque, claro, Andorra é um país independente, que não tem de seguir a lei espanhola. Grande finta a essas leis estranhas.
São as vantagens de ter um micro-país encostado à fronteira. França também usa de tais vantagens: não só consegue que o seu mui republicano presidente se inclua na lista dos monarcas do mundo (precisamente por causa de Andorra), como ainda usa o Mónaco para ter uma família real muito sua, mesmo sendo o mais republicano dos países. República, sim, revistas cor-de-rosa também!
(França tem historial nesta mistura estranha entre republicanismo radical e laivos de monarquia a assomar à superfície: afinal, o seu primeiro presidente da República (com esse título exacto) foi também o último monarca. Estranhamente, foi primeiro presidente e só depois imperador. Confusões.)
O pequeno país encavalitado entre Portugal e a Galiza
Pois bem, a conversa lá continuou, já estávamos lá para os lados de Coruche. E eu lembrei-me: bem, Portugal também teve um desses micro-países fronteiriços até 1868: o Couto Misto.
Sim, é difícil definir tal território como «país», mas o certo é que se governava a si próprio e não fazia parte nem de Portugal nem de Espanha.
São curiosidades da história e dessa fronteira que é das mais antigas da Europa, mas não deixou de ter ali uma ou outra correcção nos últimos séculos…
Diga-se, de passagem, que este pequeno «país» desapareceu num século em que ainda era possível haver territórios onde o conceito de «país» não tinha assim tanta importância.
Logo a seguir, veio o século XX, com a sua fúria de fronteiras.
Mas que língua se falaria por lá?
A pergunta mais interessante de todas e que nunca me tinha ocorrido fez-me a minha mulher, nessa viagem até Lisboa: mas afinal que língua se falava nesse tal Couto Misto?
Eu, sempre virado para essas coisas da língua, nunca tinha pensado nisso.
Mas é, claro, a primeira pergunta que qualquer português faria, perante esta informação desconcertante de que havia um pequeno país na nossa fronteira — um pequeno país entre Portugal e Espanha ou bem que fala português ou bem que fala espanhol, certo?
Na realidade, até ao século XIX, talvez não fosse difícil encontrar gente que falava apenas e só galego nas aldeias da zona. Nas aldeias portuguesas, seria quase impossível encontrar quem falasse português-padrão. Nesse tal Couto Misto todos falariam o falar da zona e tão estranho seria o cobrador de impostos que lá aparecesse a falar espanhol madrileno como aquele que aparecesse a falar português de Lisboa (ou mesmo do Porto). Provavelmente, não aparecia nem um nem outro, pois se há vantagem em não ser nem espanhol nem português, a principal será essa: não pagar impostos.
Voltando à língua. Aposto que, por esses recantos minhotos, dum lado e do outro da fronteira — e ainda mais nesse Couto Misto —, a população rural e pouco alfabetizada falaria mais ou menos a mesma coisa.
Dum lado, todos diriam falar português, do outro, diriam galego — mas a língua seria, mesmo bem entrado o século XIX, mais ou menos a mesma.
O que diriam no Couto Misto (que não era nem dum lado nem do outro), não sei: mas o que falavam seria esse galego-português, língua sem fronteira que se visse (ou melhor, que se ouvisse).
Também aposto que um português de hoje, transportado num qualquer DeLorean para essas aldeias oitocentistas, juraria a pés juntos que a língua que ouvia dos habitantes do tal «país» era galego — mas o mesmo diria de muitas aldeias portuguesas ali encostadas à fronteira.
No que toca à geografia social, estávamos longe do Porto, das escolas, das universidades, dos jornais… Ainda mais longe estávamos de Lisboa, claro está. No que toca ao tempo, estávamos ainda muito longe do país que vai quase todo à escola, que ouve rádio e vê televisão.
Falamos de aldeias perdidas em serranias distantes, encavalitadas em fronteiras a que se dava bem menos importância do que hoje. Estamos a falar doutro tempo — e por esses tempos ainda havia gente que podia falar uma língua sem saber bem se era galego ou português.
Incrível, não é?
Marco Neves
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