Comunicação de Ruy Vieira Nery

Senhor Reitor da Universidade do Algarve

Senhor Secretário Executivo da CPLP

Senhor Coordenador da Comissão Temática da Promoção e Difusão da Língua Portuguesa

Senhor Representante Permanente de Moçambique junto da CPLP

Senhor Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação de Cabo Verde

 

As minhas primeiras palavras são, naturalmente, de agradecimento pelo honroso convite dirigido à Fundação Calouste Gulbenkian, através do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas, para estar presente neste colóquio sobre Língua Portuguesa, Sociedade Civil e a CPLP.

É sobretudo na qualidade de Director do PGLCP que agora intervenho, embora não possa deixar de o fazer também com base da minha própria reflexão pessoal como musicólogo e historiador cultural. Como, por sinal, essa minha formação de músico me ensinou que o excesso de consonância tende a ser enfadonho e empobrecedor, admito que esta minha breve intervenção possa introduzir aqui e acolá no nosso debate algum elemento de dissonância relativamente a um ou outro dogma do discurso pedagógico considerado politicamente correto ou de um certo restauracionismo nacionalista revestido de roupagens tentadoramente pós-modernas.

Gostaria de começar por sublinhar, precisamente, a extrema importância e o carácter em muitos aspectos claramente inovador desta abordagem da problemática da Língua Portuguesa e do seu ensino assim proposta. Inovador, antes de mais pelo reconhecimento do papel decisivo que a sociedade civil deve desempenhar no debate sobre a Língua. Portugal e a generalidade dos países lusófonos vêm de uma tradição estatizante de raiz francesa, que remonta, em última análise, a Richelieu e a Napoleão, e que tende a abordar esta problemática na óptica exclusiva de uma definição das políticas para a Língua reservada ao Estado, através das múltiplas instituições públicas vocacionadas para este campo, dos Ministérios da Educação e Cultura às Academias e às Universidades.

Os estados democráticos têm, como é evidente, toda a legitimidade para exercer esta função, mas essa legitimidade própria não pode iludir o facto de que a Língua é, antes de mais, um património colectivo e de que por isso as sociedades, como um todo, e cada cidadão, individualmente, devem ser mobilizados de forma participativa para o debate em torno das opções de futuro que afectam a gestão e o uso desse património. Julgo, de resto, que muita dapolémica surgida ao longo da última década em torno da famigerada questão do Acordo Ortográfico de 1990 – e independentemente da maior ou menor consistência dos argumentos aduzidos a favor ou contra o novo normativo – derivou do carácter reservado do seu processo de gestação quase à porta fechada, que não se abriu suficientemente à participação da sociedade civil e não soube traduzir por isso consensos sociais suficientemente alargados no seio do espaço lusófono. A sociedade civil deveria ser, de facto, o verdadeiro protagonista em toda a sua a reflexão estratégica sobre a Língua, debatendo e definindo activamente metas e objectivos, bem como metodologias e pressupostos pedagógicos que, sem prejuízo das áreas de competência especializada que devem ser reconhecidas aos peritos, não podem ser discutidos e decididos no segredo dos iluminados – por um sinal muitas vezes de uma auto-legitimação pelo menos questionável -, sem obedecerem a um princípio de permanente prestação de contas para com os cidadãos, que são ou deveriam ser, afinal de contas, os verdadeiros “donos da obra”.

O segundo elemento da maior relevância da equação expressa pelo título do nosso Colóquio é a afirmação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa como espaço global legítimo, por excelência, para todo o debate sobre a Língua que partilhamos. O Português só nos une se for, de facto, considerado património comum de todos os seus falantes, e se as decisões relativas ao seu cânone souberem reflectir a diversidade e a riqueza dos seus múltiplos usos, sem reivindicações de privilégio adquirido decorrentes de argumentos de primado histórico ou de simples massa crítica. A problemática da Língua Portuguesa é, com efeito, matéria da responsabilidade colectiva inalienável de toda a sociedade civil, à escala de todo o espaço lusófono. Cabe, assim, a essa sociedade civil, nesta acepção multinacional mais ampla, assumir um papel activo numa vasta gama de definições de princípio que estabeleçam metas e prioridades para as políticas de Língua Portuguesa, e designadamente para as que afectam o seu ensino, a todos os níveis. E neste esforço têm de participar fundações, associações de base, organizações não-governamentais, empresas e todas as estruturas colectivas da cidadania lusófona.

Uma primeira meta é – claro está – a da afirmação do Português como uma língua eficaz de trabalho, nos planos tecnológico e empresarial. Sabemos que os nossos países sofreram, no plano linguístico, e que isso dificultou, década após década, a definição em Português de uma terminologia técnica rigorosa aplicável a tecnologias de um modo geral importadas de outros contextos linguísticos, tal como viria igualmente a suceder, mutatis mutandis, com a chamada Revolução Informática do último terço do século XX. Mas os nossos países dispões hoje, globalmente, de uma enorme massa crítica de produção científica e tecnológica de ponta e asnossas economias têm globalmente uma escala que deveriam permitir-nos, sem prejuízo de um multilinguismo indispensável à nossa plena integração num universo cada vez mais globalizado, produzir consideráveis avanços numa definição terminológica autónoma mais sistemática – e de preferência amplamente partilhada no seio da comunidade lusófona, no seu todo – para os sectores activos da tecnologia e da economia. Não é por acaso que muitas das economias emergentes à escala mundial demonstram hoje uma clara vontade de promover nos seus países a aprendizagem do Português como suporte de relações económicas cada vez mais profundas com os mercados lusófonos. Este é sem dúvida um desafio importante para os nossos sistemas de ensino, e conseguiremos enfrentá-lo tanto melhor quanto o conseguirmos fazer de forma coordenada entre todos nós, envolvendo poderes públicos organizações não-governamentais.

Mas esta visão pragmática da Língua como instrumento económico e profissional não pode fazer-nos esquecer que ela é também o suporte de uma criação cultural e artística multisecular, de uma riqueza e uma variedade internas tanto mais intensas quanto o espaço lusófono foi sempre um mosaico multicultural de enorme dinamismo, gerando interacções criativas originais em permanente reconfiguração, que constituem elas próprias um território identitário do espaço lusófono, no seu todo, à escala mundial. A nossa Língua comum foi sempre, acima de tudo, e apesar dos constrangimentos históricos de violência de que por vezes se revestiu esse processo, um espaço de partilha, de curiosidade pelo outro, de descoberta mútua, de cruzamento de saberes, olhares e sabores, e esse seu carácter fortemente mestiço enriqueceu-a e individualizou-a no contexto mundial como um fenómeno quase único de multiculturalidade. É, pois, importante que o ensino da Língua Portuguesa saiba transmitir igualmente, a par com a resposta às necessidades práticas da vida económica, esta riqueza de criatividade das nossas Literaturas, dos nossos Teatros, dos nossos Cinemas, das nossas Músicas, das nossas Artes, reflectindo tanto cada uma das identidades nacionais globais dos vários países lusófonos como as dinâmicas multiculturais internas que se processam no seio de cada um deles. A massa crítica impressionantes da produção cultural e artística lusófona, em toda a sua diversidade, constitui um capital precioso para a afirmação da Língua Portuguesa, tanto mais que o seu reconhecimento internacional é cada vez mais significativo. Sublinhe-se, além disso, que também nos nossos países o sector da Cultura se revela cada vez mas ele próprio como um terreno económico privilegiado, com uma dimensão crescente em termos de capacidade de geração de emprego e de mais valias. A parceria entre sociedade civil e políticas estatais pode também aqui ser especialmente produtiva, garantindoa viabilização do investimento e a diversidade criativa indispensáveis ao florescimento cultural e artístico em todo o seu potencial.

Por último, julgo essencial que o ensino do português saiba reflectir de forma equilibrada as dicotomias entre tradição e inovação, continuidade e ruptura, património e criação contemporânea que constituem elas mesmas uma parte fundamental da riqueza e da força de ima Língua viva. Tal como é indispensável que a Escola sabia acompanhar a dinâmica de evolução da Língua no quotidiano das nossas sociedades é igualmente essencial que ela seja um instrumento de promoção do acesso democrático ao património da história dessa mesma Língua. A criação literária em Português construída ao longo dos séculos em cada um dos nossos países não pode ser subvalorizada em função de um utilitarismo simplista e imediatista que estreite a gama de escolhas dos falantes, tanto no plano lexical e gramatical como no das referências culturais de fundo. De Guimarães Rosa e Drummond de Andrade a Baltazar Lopes, de Jorge de Sena e Herberto Helder a Pepetela, de Mia Couto e José Craveirinha a Dominga Samy, temos um património colectivo precioso de uso criativo da Língua cuja descoberta e fruição têm de ser integradas em qualquer estratégia verdadeiramente democrática e não elitista de ensino do Português. Não há, a este nível, qualquer contradição entre a atenção ao uso coloquial e a valorização do património erudito – ambos são componentes inseparáveis de um domínio linguístico rico, variado, capaz de expressar dimensões complexas e críticas do olhar sobre a realidade. E se esta estratégia implica, inevitavelmente, a produção de um cânone literário de referência, o que é essencial é que esse cânone seja aberto, polémico, permanentemente questionado e refeito, e uma das condições indispensáveis a esse exercício é a pluralidade do polos de decisão. Também aqui a sociedade civil, com a sua multipolaridade intrínseca de posturas políticas, atitudes mentais, tradições culturais, e referências religiosas e ideológicas distintas, pode ser um agente decisivo de um pluralismo de opções que salvaguarda a partilha alargada do património literário da Língua no contexto do ensino do Português, sem com isso conduzir a um cânone único, autocrático como que no caso de Portugal caracterizou durante gerações sucessivas os programas de ensino oficiais do Estado Novo.

Vale a pena, por conseguinte, repensarmos a problemática do ensino do Português nesta perspectiva assente na interacção livre e criativa permanente entre uma multiplicidade de agentes públicos e privados representativos do universo lusófono, envolvendo a sociedade civil e os poderes públicos da totalidade dos países lusófonos. Poderemos assim chegar progressivamente a modelos simultaneamente mais operacionais no plano concreto do nosso lugar próprio na Economia global do nosso tempo e mais representativos do contributouniversal da diversidade contemporânea e do património histórico-cultural que juntos construímos a partir da nossa língua comum.

RUI VIEIRA NERY

Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas

Fundação Calouste Gulbenkian

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