O mostrengo
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”
“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que a minha alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!
(Fernando Pessoa, Mensagem[1])
Camões, diz Eduardo Lourenço, fez mais do que pintar-nos. Deu-nos o palco do mundo, celebrou nele a nossa aventura descobridora e simbólica em tais termos que não parece ter-nos deixado outra alternativa como entidade colectiva do que refazer sem fim a viagem do Gama ou ficar de braços cruzados na praia deserta do Restelo, a lamentarmo-nos do que fomos e já não somos, assistindo à aventura dos outros.
Foi o que Pessoa quis dizer, quando escreveu que depois da descoberta do caminho marítimo para a Índia os portugueses ficaram sem emprego. Mas enganou-se. Quem nos desempregou não foram as Descobertas foi o cantor delas. Pessoa bem o sabia que teve de se empregar no desemprego[2].
Camões e o seu poema “Os Lusíadas” falam-nos da História de Portugal, Transformam factos históricos numa epopeia onde a História do nosso povo anda de mãos dadas com os desígnios e a vontade dos deuses.
O poema estrutura-se com base na viagem de Vasco da Gama. Viagem que une o Oriente ao Ocidente. Viagem que uniu mares e, assim, aproximou continentes, culturas e civilizações.
A descoberta da passagem do Cabo das Tormentas teve o poder histórico e simbólico de ousar confrontar o gigante Adamastor, de atrever-se a ir ver os segredos escondidos / Da natureza e do húmido elemento, / A nenhum grande humano concedidos / De nobre ou de imortal merecimento, …[3]
“Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse (…) ?, pergunta o mostrengo, pela voz de Pessoa.
A “gente ousada” descobriu mundo. Alargou, geograficamente os domínios terrestres, roubando aos deuses o que antes estava sob a sua autoridade — Adamastor era “capitão do mar, por onde andava a armada de Neptuno”, o deus dos oceanos.
Da ocidental praia lusitana, barões ilustres, levaram a Terra até os céus. Ou, se preferirem, descobriram que os céus estavam aqui na Terra. No final da viagem que os levou à Índia, os marinheiros gozam do prazer físico em encontro amoroso com belas ninfas.
Na obra de Camões confluem e convivem homens e deuses, espaço conhecido e espaço mítico, factos históricos e destino cósmico.
E o poeta, relatando acontecimentos, transforma-os em mitos, em feitos que se fixam num tempo que ultrapassa o da História. Os feitos dos portugueses não ficaram ali, nos anos quatrocentos e quinhentos ou nos de toda a História que os precedeu, eles projectam-se constantemente no futuro.
Somos o que somos, porque fomos. Somos, não o que historicamente fomos, senão o que Camões quis que nós fôssemos.
Camões deu-nos o nosso bilhete de identidade e fez o nosso registo espiritual — deu-nos a alma, a alma que faz com que, cada um de nós, tal como o homem do leme, diga: “Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu.
Sabemos quem fomos, sabemos quem somos. Temos consciência da nossa identidade: somos portugueses.
No tempo, no passado, ficou o que já passou. O que passou no tempo de Camões, Os Lusíadas trouxeram-no para o futuro e chegou até nós em imagem de glória e fama, imagem de grandeza, que alimenta continuamente o nosso ser e faz com que continuemos a ser, tal como ele lembrava ao rei:
…
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.
Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes leões e bravos touros,
Dando os corpos a fomes e vigias,
A ferro, a fogo, a setas e pilouros,
A quentes regiões, a plagas frias,
A golpes de Idolatras e de Mouros,
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a pexes, ao profundo![4]
O poder desta alma, que o poeta nos deu, é a força de união entre todos nós portugueses, hoje e sempre, os que vivem na metrópole ou os que estão dispersos pelo mundo. Na Venezuela, como em Freixo-de-Espada-à-Cinta ou no Machico, somos portugueses. Somos portugueses e temos saudade. Saudade da nossa terra, uma saudade regionalista, mas uma saudade que alimenta o sentimento de um apego a uma tradição histórica, a um inconsciente colectivo, ao espírito de uma língua.
Armas e barões assinalados, da ocidental praia lusitana chegaram aos confins da África e dobraram o Cabo das Tormentas, fazendo dele o Cabo da Boa Esperança.
Unindo o Oceno Atlântico ao Índico, mudaram a face da Terra, mudaram a visão planetária do universo. Para nos darmos conta da importância deste feito, pensemos só o que seria do planeta hoje se, em vez de terem sido os portugueses a ir de cá para lá, a ir do ocidente até ao oriente, tivessem sido os chineses, por exemplo, a descobrir essa passagem.
Em 1420 os chineses chegaram a Quíloa, na costa oriental de África. Não foram mais longe. Coube ao povo luso a façanha histórica de levar a Europa para a Índia e para as longínquas terras da Ásia.
A partir de então, o Atlântico vai transformar-se no centro do planeta e a Europa, passará a ser o centro donde irradia civilização e cultura para todo o mundo. O mapa-mundo adquire uma forma nova: à direita, a Àsia e à esquerda, o Novo Mundo, a América. Ásia e América ficam relegados para os cantos, o centro é ocupado pelo Atlântico. Portugal ocupa um lugar central e, por ele e com ele, também a Europa. Lisboa é a capital do Império. Um Império que difundiu fé e cultura.
Foi o povo luso quem produziu este mudança. Foi Camões quem a fixou na História e na memória. Ao transformar aqueles acontecimentos em mito, o poeta criou a nossa alma, a alma portuguesa.
Camões conheceu e viveu esta obra de Portugal, ele conheceu os novos mundos que Portugal deu ao mundo, mas viu e sentiu o processo histórico de dissolução que já estava em marcha. Nele há ainda, no entanto, memória e esperança, memória do que viu e conheceu e esperança de que esse império possa regressar ao seu período de auge. Ele, que foi o criador do mito, vive ainda a realidade de uma fé que crê que Portugal pode tornar a ser Portugal, ou seja a nação que fez os feitos que ele narra.
Fernando Pessoa, na “Mensagem” fala-nos também de Portugal e do seu Império. Fá-lo, séculos mais tarde numa época em que a dissolução do Império já é uma realidade. Em Pessoa, existe a memória de uma imagem de Portugal: a imagem mítica que Camões soube criar. Pessoa faz reviver a alma da nação portuguesa, crê nela e espera o aparecimento de um Supra-Camões, capaz de dar ânimo e alento a essa alma.
O que em Camões era esperança de reconstrução, de ressurgimento do prestígio imperial, em Pessoa assume a forma de sonho, de utopia.
Pessoa, decepcionado com a realidade histórica, mas acreditando numa “Nova Renascença”, alimenta a utopia. Utopia de um império: um império de cultura.
Camões realça a aventura, o risco: a viagem. Para Pessoa a viagem será uma viagem sem limites geográficos, antes uma aventura de espírito. O império de “Os Lusíadas” é um império territorial, o império de “Mensagem” é o império da língua portuguesa.
Em “Os Lusíadas” glorifica-se o passado, enquanto que na “Mensagem” se glorifica o futuro.
Tal como já fizemos o passado, façamos também agora o futuro.
Tinha razão Fernando Pessoa quando dizia “A minha pátria é a língua portuguesa”. A Pátria está na língua, porque ela é o veículo que nos leva aos valores que se identificam com ela, os valores que nos fizeram a nós, povo português.
O carpinteiro precisa da serra para das árvores fazer móveis, o ferreiro precisa da forja. Nós precisamos da língua. Com ela, queremos fazer móveis e queremos moldar o ferro. Queremos continuar a ser — que os nossos filhos continuem a ser — “o homem português”, esse homem que teve de descobrir o caminho marítimo para a Índia e o caminho marítimo ou aéreo para a Venezuela, por exemplo.
Se perdermos a nossa língua, ficamos como o carpinteiro que perde a sua serra ou o ferreiro que perde a sua forja. Deixamos de fazer móveis. Deixamos de moldar o ferro.
Com a língua de Camões sejamos obreiros da construção do futuro.
No tempo do poeta, levámos as caravelas e as naus até à longínquea China e Japão, até às Américas. Infelizmente, lá dentro foi a Europa do poder militar e político. Continuemos esta obra, mas levando agora cultura, vida.
Amigos, tal como o poeta, digo:
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor falta cumprir-se Portugal!
Francisco Nuno Ramos
10 de Junho de 2011
[1] Fernando Pessoa, Mensagem – Segunda Parte: Mar Português – IV.
[2] Eduardo Lourenço, “Camões ou a Nossa Alma” in Camões e a Identidade Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.
[3] Camões, Lusíadas, V, 42.
[4] Camões, Lusíadas, X, 146 e 147.