Blimundo ou O mito fundador da cabo-verdianidade 

20Desde criancinha que oiço as mais variadas versões da estória do Blimundo, mas  considero a versão que escolhi a mais bonita e pertinente.  

Resumidamente a estória conta-se assim: Era uma vez Blimundo, um boi forte negro e  lindo, que trabalhava para o rei, trapichando* sem cessar num magnífico trapiche*;  Blimundo apaixona-se pela codezinha* (sugestão: por ser o nome com que é reconhecida  na história deverá ser escrito em maiúscula) do Rei, mas resolve fugir quando vê que é sobre explorado e o seu amor não é correspondido. Sem o boi, o rei perde a sua principal  fonte de riqueza e furioso manda os seus soldados capturarem Blimundo, mas em vão,  pois são todos derrotados por este. Então o rei que sabe que Blimundo gosta de música e  da sua codezinha manda um emissário que é um tocador de cavaquinho prometer-lhe a  liberdade e a sua codezinha em casamento caso volte para o palácio.  

Apaixonado e seduzido pela música, o boi portentoso volta com o tocador de cavaquinho  mas é logo mandado prender pelo rei. Blimundo vê que caiu num logro e quando a  codezinha vai visitá-lo no curral onde está preso ao trapiche, uma lágrima de tristeza cai lhe dos olhos. Condoída a codezinha abraça-o e beija-o na face. O boi transforma-se então  num lindo mancebo negro e forte por quem a bondosa codezinha se apaixona. Casam-se,  têm muitos filhinhos e vivem felizes para sempre. 

Esta minha versão tem a seguinte leitura: em linguagem metafórica, o Blimundo é o  africano escravizado trazido do continente para as ilhas onde era a principal força de trabalho; o rei simboliza o colonizador; e a codezinha do Rei é a mulher branca do reino  despreconceituosa que se casa ou se cruza com o homem negro dando origem à  mestiçagem.  

Os filhos do Blimundo e da codezinha do Rei mais não são que os crioulos que somos  nós, mulatos e mestiços. 

Lendo a estória do Blimundo e fazendo a sua interpretação, os filhos dos filhos dos nossos  filhos poderão sempre saber donde vem este povo mestiço que habita as ilhas. Contudo, o mito vai mais longe. Explica porque no arquipélago se formou uma sociedade  única mestiça, com interpenetração entre brancos e pretos que vindos, ambos, de fora aqui se encontraram e se cruzaram; e que tanto nos distingue de outras sociedades, onde brancos e negros formaram cada um o seu gueto e mutuamente se excluíram, como por  exemplo na África do Sul do Apartheid de triste memória. 

Em Cabo Verde os aportes culturais trazidos pelos europeus e pelos africanos cedo  começaram a misturar-se dando origem a uma cultura original e diferente quer da trazida  por uns quer da trazida por outros. Foi assim que, antes do dobrar do século XV, que tinha  assistido ao achamento e povoamento de Cabo Verde, já se falava nas ilhas o crioulo,  língua resultante da fusão do português com os falares das diversas etnias que povoaram  as ilhas, entre elas jalofos, lebus e serees*. Também o milho usado inicialmente na  alimentação dos africanos cedo se converteu no prato nacional de todos os habitantes das  ilhas.  

O crioulo e o milho são traços marcantes da identidade cabo-verdiana e por eles se vê  como nas ilhas houve fusão de culturas, com naturais preponderâncias é certo, mas não  justaposição, como aconteceu em outras paragens. 

Para mim, isto só se explica a partir do tipo de cruzamento que nestas ilhas se verificou, de europeus e africanos, ambos vindos de fora, que tiveram de se adaptar ao difícil ecossistema das ilhas e deram origem a um verdadeiro povo mestiço dotado de uma  cultura crioula. 

É certo que esta mestiçagem também resultou do cruzamento forçado e violento do senhor  branco com a sua escrava negra, ou do homem negro com a mulher branca, ou, ou, ou… Mas este é o prosaico quotidiano… 

Praia, maio de 2012.

Uma mulher transporta água na praia do Tarrafal ,Cabo Verde, 04 dezembro de 2012. ANTÓNIO COTRIM/LUSA
Subscreva as nossas informações
The following two tabs change content below.
Imagem do avatar

Vera Duarte

Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina nasceu em Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde. É Juíza Desembargadora, poeta e escritora, formada em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Membro das Academias Cabo-verdiana de Letras, de Ciências de Lisboa, Gloriense de Letras. Foi Ministra de Educação Ensino Superior, Presidente Comissão Nacional Direitos Humanos e Cidadania, Conselheira do Presidente da República e Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. Integrou organizações como Centro Norte-Sul Conselho d`Europa, Comissão Internacional Juristas, Comissão Africana Direitos do Homem e Povos, Associação Mulheres Juristas e Federação Internacional de Mulheres de Carreira Jurídica. Recebeu várias condecorações É poeta e autora de vários romances.
Imagem do avatar

últimos artigos de Vera Duarte (ver todos)

Scroll to Top