Vato Boro, Timor-Leste, 23 nov (Lusa) – Em outubro ou novembro de “1964 ou 65”, não se lembra bem, José Serra, saiu do Fundão, deu a volta ao mundo e, mais ou menos um mês depois, chegou a Timor-Leste, de onde nunca mais saiu.
Avô Serra, como é conhecido por aqui, completou 85 anos em outubro e é o decano português em Timor-Leste, com 50 anos de vida no território, alguns dos quais marcados por meses no mato a fugir à guerra civil timorense e, posteriormente, aos ataques indonésios.
Depois de fazer 15 mil quilómetros, desde a pequena aldeia de Joanas, Castelo Branco, José Serra nos últimos 50 anos praticamente não saiu do corredor de terra de 100 quilómetros entre Díli e a fronteira com a Indonésia, a ocidente.
“Cheguei a Timor dia 13 ou 14 de dezembro. Não tinha nada a ver com o Fundão. Eu estava em São Vicente da Beira, Joanas e já cá tinha um irmão. Ele vivia menos mal e como lá em Portugal também se vivia muito mal, vim”, contou à Lusa.
O irmão, que no início o tinha recebido muito bem, começou a tratá-lo mal, pelo que decidiu ‘independentizar-se’, pedindo ajuda ao então governador, Alves Aldeia, para lhe arranjar algumas cabeças de gado para poder viver.
“Deu-me 200 canos para puxar a água, deu-me cinco contos para tratar o café e 25 cabeças de gado. Tive que ir buscar o gado a Díli. Demorei uma semana a pé para voltar”, recorda.
“Com as 25 cabeças cheguei a ter 400. Estava todo contente. E então meteu-se a filha da mãe da guerra. Chegou 1974 e começaram os partidos. Em 1975 já não pude fugir”, lamenta.
Até visitar Díli tem sido algo pouco comum para o ‘avô’, que prefere a tranquilidade do topo do monte em Vato Boro, um pequeno ‘suco’ de 10 aldeias a oito quilómetros da vila de Maubara, melhor medidos em 35 minutos de carro aos solavancos pela estrada, que outrora, ligava a capital à fronteira.
Em 1975 e nos anos seguintes chegou a pensar em fugir, escapando à guerra civil e depois à ocupação indonésia, mas não conseguiu: o território estava praticamente fechado.
Chegou a ter viagem marcada, passaporte pronto e sapatos comprados para ir lá já neste século, aproveitando o programa do Governo português, Portugal no Coração, que ajudava a que portugueses fora de Portugal há muito tempo fossem fazer uma viagem à terra natal.
“Tive medo. Tive medo de não voltar”, conta.
“Eu estou muito contente com a independência. Mas se eu ainda pudesse andar e andar, queria ir ainda a Portugal. Queria ir mesmo a Portugal. Todos me querem levar, mas eu digo: se for, já não volto, estou velho. E fico triste por deixar aqui todos os que ajudei a criar”, admite.
Pode ter ajudado ao medo o infortúnio dos dois que em Timor-Leste beneficiaram do programa: um morreu em Portugal poucos dias depois de chegar, o outro morreu em Timor-Leste menos de um mês depois de regressar.
Até os sapatos correram mal: para um homem que há 50 anos que anda descalço ou de chinelos, os sapatos duraram umas dezenas de metros nos pés.
Hoje, apesar das melhorias dos últimos anos, continua a viver em condições pobres, o que não o impedem de ajudar os vizinhos que ali fizeram casa, à sua volta, mercê das vendas de fruta e animais que faz para o Hotel Timor em Díli.
“Esta semana tive azar. O carro chegou lá baixo mas á entrada de Díli avariou”, recorda.
Mas Serra parece pouco preocupado, recordando momentos mais difíceis e o rádio “filipe” que tinha enterrado na terra, e que mesmo sem antena deixava acompanha as notícias de Portugal.
“Mas eu sou português e nunca troquei a minha camisa por outra. Sou sempre português. E quem quer ser um bom português tem que vir para aqui. Porque aqui têm mais amizades aos portugueses, mais saudades”, disse.
O seu gado ajudou a alimentar os soldados e o seu rádio serviu para dialogar com os indonésios que lhe diziam que ele era o embaixador de Portugal em Maubara.
“Ó senhores polícias e militares, não digam isso. Sou português, mas sou mais de Timor. Os embaixadores portugueses não andam assim descalços. Têm boa gravata, bom casaco e bons sapatos, não andam esfarrapados como eu”, respondia.
“E ele dizia que eu lá tinha um rádio e eu dizia: tenho um rádio mas o senhor tem que me dar dinheiro para comprar a pilha, para eu ouvir Portugal. E eles pousavam as armas e bebiam café”, conta.