Aquele que mantém a esperança

Carlos Lopes

Num mundo turbulento o recurso à sapiência dos nossos referentes torna-se ainda mais premente.

Quando nos lembramos dos ensinamentos de Amílcar Cabral damo–nos conta de como o global é tão local. Ouvimos falar da personalidade em termos de postura, comportamento, liderança, carisma. Tudo isso transparece nos vídeos, nas fotos ou áudios que registaram o homem, nas análises que muitos nos brindaram, ou ainda na marca de um inquérito da BBC, que o reconheceu entre os mais influentes da história contemporânea mundial.
Mas é sobretudo através da leitura dos seus escritos que os jovens podem hoje absorver a minúcia do personagem. Cabral não era só poeta, era sonhador. Não era só chefe guerrilheiro, era articulador. Não era só diplomata, era mobilizador. Não era só líder, era pensador. Não era só professor, era zelador. Parecem muitas qualidades para uma só pessoa?… mas assim são os seres especiais. Têm defeitos também, são humanos, mas deixam uma marca indelével por serem únicos. E, por nos trazerem esperança.
Em tempos difíceis olhamos para o retrovisor, reacção natural de quem prescruta o futuro sem balizas claras e velocidade controlada. O passado parece-nos mais fácil de interpretar, diferente de ter sido mais fácil de viver ou enfrentar. Afinal de contas o que pode ser mais difícil de mudar hoje do que o que Cabral viveu na sua juventude?
Organizar do nada um povo colonizado, num território marginal, contra um exército que chegou a ter mais de 20.000 efetivos na frente de guerra, equipado com meios aéreos assinaláveis, logísitica da NATO e apoio diplomático de países poderosos. Conseguir ser vitorioso de forma transcendental: estruturando o caminho para a libertação da Guiné e Cabo Verde, provocando a unificação do movimento de libertação em Angola, despoletando uma revolta que acabou eliminando o fascismo em Portugal, e inspirando uma nova vaga de pensamento panafricanista e revolucionário.
Às facetas de organizador exímio falta acrescentar a contribuição teórica. Com exemplos como a cenceptualização do papel da cultura na libertação, que depois seria ampliada na pedagogia do oprimido de Paulo Freire; a transformação da leitura marxista da luta de classes para a configuração de como um povo subjugado incarna uma classe nacional na sua luta contra o colonialismo, tese mais sofisticada do que a versão simplista de um Kwame Nkrumah; a interpretação metafórica do papel ambíguo da pequena burguesia, hoje diríamos das elites, no período pós-colonial, sujeito de perpetuação de práticas alienadas, que Frantz Fanon desenvolveu em termos psicológicos; ou a elaboração de um novo conceito de unidade, só atingível com a sublimação do que chamou de prática revolucionária, ou seja uma postura para os movimentos do seu tempo, distinta dos populismos baratos em que se baseiam muitos dos contestatários do presente.
Tudo isto falando para camponeses com o mesmo à vontade que falava nas tribunas globais. Para uns usando os exemplos do que viviam no seu quotidiano simples – panela, terra, morança ou floresta – e para outros oferecendo a sabedoria popular dos ditados e das adivinhas africanas, como ponto de conexão com essa mesma realidade.
Cabral detinha uma magia nas palavras, usava comparações, metáforas e sobretudo demonstrava através delas o respeito pelo outrém; não distinguindo em grau, género ou raça, como agora nos habituamos a dizer. Que o seu exemplo de vida e o seu legado nos ajudem a manter a esperança.
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