Aquaris

Lisboa, 14 mar (Lusa) – O realizador brasileiro Kléber Mendonça Filho estreia esta semana em Portugal o filme “Aquarius”, sobre a resiliência de uma mulher e de um apartamento, que é também um retrato sobre a memória e sobre um país.

Protagonizado por Sónia Braga e rodado no Recife, “Aquarius” é a segunda longa-metragem de Kléber Mendonça Filho e que lhe consolidou fama internacional, aos 49 anos.

Parte desse sucesso do filme deve-se à personagem Clara, uma jornalista reformada que se recusa a sair do apartamento de um pequeno prédio junto ao mar, ameaçado de demolição por pressões de uma imobiliária. Outra parte do sucesso deve-se à forma como a crítica internacional e o público acolheram esta história, contou o realizador à agência Lusa.

Em Portugal, para acompanhar a estreia do filme, Kléber Mendonça Filho recorda que, com “Aquarius”, quis filmar a arquitetura numa cidade, a ideia de demolição e ainda uma mulher forte, que a sociedade encara como fraca, por ser mulher e mais velha.

“A partir dessas ideias eu tinha um bom conflito humano. Falei da demolição e da mulher, mas é um filme sobre arquivo. Sou fascinado por arquivos, não no sentido oficial, mas no sentido de que todos nós temos na nossa casa, fotografias e discos e livros, móveis, nossas próprias memórias íntimas. Tudo isso é um arquivo”, afirmou.

“Aquarius” está contaminado por essa noção de memória, da personagem Clara, em relação à casa onde habita, em relação ao passado e à doença que a marcou.

“Fico muito feliz e impressionado como esse tema encontra uma ressonância no coração das pessoas”, admitiu.

Kléber Mendonça Filho reconheceu que uma parte do interesse internacional pelo filme se deveu também ao protesto feito, com elenco e técnicos, em maio do ano passado, no festival de Cannes, em França.

Aproveitando a estreia mundial, exibiram cartazes contra a destituição da então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, apelidando de “golpe de Estado” a substituição por Michel Temer. Internamente, o realizador entendeu que a não indicação para os Óscares e a classificação para maiores de 18 anos foram uma espécie de resposta ao protesto.

Dias depois do protesto, foi feita uma denúncia anónima sobre alegadas irregularidades na forma como Kléber Mendonça Filho obteve financiamento, que levou o Ministério Público a abrir um inquérito. O realizador refere que o inquérito deverá ser arquivado por não ter sustentação.

“O nosso protesto em Cannes gerou muito apoio, mas também muitos ataques. A direita tentou criar um boicote que obviamente só fortaleceu a energia dos que queriam ver o filme. O filme pegou essa coisa do ‘zeitgest’ e gerou uma fonte inesgotável de debate. Muita imprensa, críticas positivas e foi incrível o que aconteceu no Brasil”, recordou.

Aberto a vários níveis de interpretação, por abordar o envelhecimento, a vida na cidade ou o desenvolvimento económico, “Aquarius” foi ainda visto por alguns críticos como uma analogia do que se passou no Brasil, com a destituição de Dilma Rousseff.

Kléber Mendonça Filho diz que comparar a personagem Clara a Dilma Rousseff e comparar aquele apartamento com a presidência é uma “correlação extraordinária” que ele não podia prever, porque o filme foi rodado em 2015 e o argumento estava escrito desde 2012.

“Em 2015, como cidadão brasileiro nunca teria antecipado o desastre social e político que terminou acontecendo em 2016. Eu achava que a democracia no Brasil era mais sólida (…). O filme estreou num clima social e político muito inusitado e que fortaleceu muito a receção nas salas de cinema”, disse.

“Aquarius” faz o seu caminho junto dos espetadores, enquanto Kléber Mendonça Filho tenta terminar o argumento de um novo filme, intitulado “Bacarau”, a correalizar com Juliano Dornelles. Será um ‘western’ no sertão brasileiro, focado numa comunidade que “tem muito talento para a violência”, descreveu.

Sobre fazer cinema atualmente no Brasil, Kléber Mendonça diz que existe preocupação “em relação ao que pode vir a acontecer, mas não há nenhum indício de que a coisa vai mudar”.

“Todo o mundo continua se comportando como se vivesse numa democracia e temos o direito de protestar e dizer que isso está errado. Vou continuar a fazer o que sempre fiz (…). Penso em fazer filmes que sejam honestos, com uma visão do mundo que partilho com amigos, e eles têm tido uma ressonância muito interessante não só no Brasil, mas internacionalmente também. A ideia de filme-denúncia que quer mudar o mundo não é comigo”, esclareceu.

SS // MAG – Lusa/fim

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