Abade Faria: O Pai do Hipnotismo

Sempre que temos de começar uma nova conta, temos de responder a perguntas supostamente fáceis: onde é que os seus pais se conheceram? Como se chama a cidade onde fez a faculdade? Como se chama o seu melhor amigo? Eu escolho sempre a mesma pergunta: como se chama o seu livro favorito? É talvez a única resposta que nunca muda, já lá vão 47 anos. Tinha 13 ou 14 anos quando o li. Eram 3 grandes volumes: O Conde de Monte Cristo. Hoje, não sei explicar o que é me encantou na história e já nem me lembro do final, mas há uma personagem que sempre me intrigou: o velho prisioneiro que ajuda o Conde de Monte Cristo a fugir da prisão. Eu só vim a descobrir a personagem que inspirou Alexandre Dumas, muitos anos mais tarde, quando me mudei de Portugal para Goa. Em Panjim, num largo bem central, podemos encontrar a estátua desta figura histórica que foi José Custódio Faria, mas que ficou conhecido para sempre como Abade Faria.

Uma pergunta interessante que se coloca sempre quando se fala dele é: Afinal, Abade Faria era português ou goês? Como acontece sempre com personalidades famosas, cada um puxa o seu rabo à sardinha. Um português dirá: claro que ele era português! Quando ele nasceu, Goa era uma colónia portuguesa. Os goeses dirão: Nunca! Abade Faria é nosso! É filho desta terra.

No entanto, em vida, alguém se importaria com a nacionalidade dele? Abade Faria em vida, nunca foi compreendido como aliás, muitos génios. 

A minha curiosidade levou-me até a sua casa, hoje convertida num orfanato em Candolim.

Os pais divorciam-se quando ele era ainda muito novo. O divórcio na altura não deve ter sido fácil obter, mas no fim os pais conseguiram tendo como obrigação dedicar a sua vida à igreja. O pai torna-se padre e a mãe freira. Apesar da vida religiosa, o pai acompanha o seu filho e cedo mudam-se para Portugal. Em Portugal obtem uma bolsa de estudo concedida pela rei D. José I e vai estudar para Roma. Como o pai, também ele se torna padre e tira o doutoramento em Teologia. A sua tese é dedicada a D. Maria I.

Da mãe pouco se sabe. Apenas que se junta às irmãs do Convento de Santa Mónica em Velha Goa. 

Um dos episódio que todos conhecem em Goa chama-se kator Re Bhaji que traduzido literalmente em português, significa: corta a hortaliça. No entanto o verdadeiro significado é: Não te preocupes. Um episódio singular que se deu quando Abade Faria foi trazido à presença de D. Maria I de Portugal, no palácio de Queluz. Estava prestes a falar para a audiência, mas sentindo a presença da corte, fica mudo. O pai, que se encontrava perto, sussurrou-lhe em Konkani – língua oficial de Goa – kator Re Bhaji. Abade Faria, perde o medo, e dá a sua palestra.

Esta ideia de que uma simples frase, pode eliminar a nossa inibição, ficou inculcada na sua mente, mas como todas as ideias na nossa vida, precisaria de encontrar um tempo e um espaço próprio para desabrochar, o que só aconteceu em França quando ele conheceu o Marquês Chestenet de Puysegur – um dos discípulos de Mesmer. 

Estamos no século XVIII e estes são os primeiros passos da ciência da psiquiatria moderna. De Mesmer, surgiu a palavra mesmerizing em inglês, que hoje é mais conhecida como hipnotismo. Não nos podemos esquecer que estamos numa época em que a Europa acreditava em bruxarias, magia e milagres. Acreditar que os doentes poderiam se curados pelo poder da sugestão, através de um suposto fluído magnético, era a teoria de Mesmer. Apesar de Mesmer ser médico, as suas ideias não foram aprovadas oficialmente e chegaram mesmo a ser proibidas. É por esta altura que Abade Faria chega a França e tem como professor Puysegur. Abade Faria interessa-se pela teoria de Mesmer, e apesar de não ser médico, decide estudar o hipnotismo de uma forma científica para que esta pudesse realmente ajudar a humanidade. 

Começa a dar aulas de hipnotismo numa escola em Paris por 3 francos à hora. A sua teoria é diferente: Para ele o hipnotismo não é um fluído magnético, mas sim um sono lúcido. Faz várias experiências, mas levaria muitos mais anos para que as suas ideias fossem aceites. Abade Faria é visto, na sua época, como um fraude e representado como um palhaço nos teatros parisienses. Ninguém acredita no seu trabalho. 

Em 1843, o inglês James Braid, interessa-se pela suas ideias e é o primeiro a usar a palavra hipnotismo. É esta a palavra que hoje conhecemos.

Muitos anos mais tarde, já no século XX, Egas Moniz, médico português, dá o devido crédito a Abade Faria quando escreve o livro: O Padre Faria na História do Hipnotismo.

Pelo que se sabe foi preso pelo menos duas vezes. Primeiro na La Bastille. A história de como foi parar à Bastilha e de como se libertou é muito interessante. Estamos no ano de 1789. Abade Faria encontra-se numa casa de jogos. O proprietário do negócio, acha que Abade Faria tem poderes mágicos e por isso todos os clientes ganham os jogos. Muito provavelmente não estava a fazer lucro nenhum. Fica furioso e faz queixa. O padre Faria é preso na Bastilha, mas a revolução francesa está à porta e precisamente a 14 de Julho – dia em que a França celebra a sua liberdade, os revolucionários franceses tomam conta da Bastilha e libertam todos os presos. Abade Faria é um homem livre lutando ao lado dos revolucionários franceses. A liberdade não dura muito tempo. Dirige um batalhão de cidadão contra a Convenção nacional francesa em 1795 e é preso no famoso Chateau D’If. Ali esteve até 1810. Alexandre Dumas de alguma forma, tem conhecimento deste evento, mas não há provas de que alguma vez o tenha conhecido. É no castelo de If que o Conde de Monte Cristo e o Abade Faria se encontram.

Goa, Portugal, Itália, França. Padre, professor, revolucionário.

Podemos dizer que foi sem dúvida um homem aventureiro. Lutou contra tudo e todos pelas suas ideias, não só científicas, mas políticas. Foi ridicularizado, maltratado mesmo, mas nunca desistiu.

Estátua de Abade Faria perto de “Old Secretariat” em Goa.

Por fim, acaba por se tornar um recluso numa instituição religiosa onde escreve o seu livro. De quatro volumes que pretende escrever, acaba por só escrever um: De la Cause Du Sommel Lucide, em português: Sobre a Causa do Sono Lúcido. Morre em 1819. Este é o seu legado.

 

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Nalini Sousa

Nalini Elvino de Sousa é uma portuguesa de origem goesa que vive em Goa há mais de 25 anos. É incapaz de estar quieta e essa inquietude leva-a assumir vários papéis: professora, realizadora, produtora e etnomusicóloga.
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