Díli, 26 nov (Lusa) – Uma frase em inglês, dita em alto mar por um capitão indonésio, tornou-se numa das mais simbólicas do ativismo político português por Timor-Leste: “This is Papa Kilo Alpha India. Indonesian War Ship. You are now in Indonesian territorial seas”.
“Isto é Papa Kilo Alfa India. Navio de guerra indonésio. Estão agora em águas territoriais indonésias” foi a primeira comunicação do vaso de guerra indonésio colocado a travar o progresso do Lusitânia Expresso, a 11 de março de 1992.
Com mais de uma centena de jornalistas, estudantes e individualidades, entre elas o ex-Presidente português António Ramalho Eanes, a bordo, o navio português partiu com o simples mas polémico objetivo de chegar a Timor-Leste, levando coroas de flores para o cemitério de Santa Cruz.
E ainda hoje, volvidos quase 24 anos desse momento em que o Lusitânia Expresso ouviu a “histórica” comunicação do vaso de guerra indonésio, se debate se o navio estava dentro ou fora das águas territoriais de Timor-Leste.
Independentemente da resposta, para muitos, no momento em que “O Barco das Flores” iniciou o regresso a Darwin, o grande objetivo da iniciativa estava ganho: Timor-Leste manteve-se durante três meses nas páginas dos jornais e nos noticiários das grandes cadeias televisivas.
A grande operação mediática, com mais ou menos polémica, mais ou menos crítica, estava terminada e para trás ficavam dezenas de histórias e de momentos.
Numa conversa com a Lusa em Díli, 10 anos depois dessa viagem, Rui Marques, então do Fórum Estudante e mentor do projeto, explicou que esse momento lhe ficou para sempre gravado na memória.
“Há sempre uma discussão se estava a 14, se estava a 12, se estava a oito milhas. O nosso comandante dizia que já estava nas águas territoriais e os indonésios também”, recorda.
O momento tornou-se importante, também pelas críticas que gerou aos promotores da iniciativa por terem escolhido um comandante “medroso” que se assustou quando confrontado com os navios indonésios.
Rui Marques desdramatizou na altura a questão do comandante e relembrou que o navegador não foi a primeira escolha. “O comandante do navio foi o quarto que tivemos. Houve três que desistiram e creio que este não desistiu porque tinha chegado a Lisboa na véspera da partida do Lusitânia e não percebeu de todo a dimensão do projeto”, contou.
“Ele pode ter tido os seus defeitos, mas de facto foi o único que aceitou e que levou a missão até ao fim, honra lhe seja feita”. E acrescentou que “nunca poderia ter sido um militar” porque seria “desvantajoso” haver qualquer ligação formal ao estado português.
Mais importante do que olhar apenas para o momento da comunicação, realçou Rui Marques, é recordar as “12 longas horas de intimidação” da parte dos vasos de guerra indonésios, que primeiro acompanharam o Lusitânia Expresso “a escassas centenas de metros” e que, já manhã, se cruzam à frente do navio português “fechando a passagem”.
Após a paragem, os promotores defrontam-se com nova crise: um adiamento do regresso impediria as televisões de fazer chegar imagens e notícias nessa noite. O mundo ficaria a saber o que tinha ocorrido pela versão indonésia, filmada de helicópteros que então sobrevoavam o navio português.
Os que argumentam que se deveria ter enfrentado os indonésios “são os que ficaram sentados em casa” e os que “se tivessem sido desafiados para ir, não teriam ido”. “São os heróis de garganta e de sofá que vêm o mundo de pantufas”.
Talvez por ter feito o contrário, e ter aceitado participar, Ramalho Eanes mereça de Rui Marques bastante respeito.
“Tenho muito respeito pelo general Eanes. Muitos outros recusaram porque tiveram medo”. “No momento do encontro com os indonésios, o general Eanes perguntou se eu queria que ele interviesse. Eu disse que não e ele, com muita dignidade, aceitou e disse apenas que não era feito para missões de paz”, disse.
E com o humor possível ‘a posteriori’, Rui Marques aproveitou para recordar que a Missão de Paz a Timor convidou “toda a gente”, começando pelas fileiras cimeiras da vida pública e descendo progressivamente até chegar aos “anónimos que aceitaram ir”.
Salvo algumas mudanças “em aspetos de menos relevância”, Rui Marques garante que “no essencial não mudaria nada”. “O Lusitânia Expresso foi pensado como uma operação mediática, programada com muito rigor e muito cuidado, sabendo exatamente quais eram os objetivos a atingir e procurando estabelecer um patamar equilibrado entre objetivos a atingir e preço a pagar por isso”, disse.
E o balanço foi conseguido, mediatizando-se o problema de Timor-Leste, como lembrou Rui Marques, “graças à ajuda dos indonésios, pelos erros táticos que cometeram”, e evitando um preço “em termos de vidas humanas, quer não só os que iam no barco, quer em Díli e em todo o Timor”.
Eventualmente, se fosse hoje, as coisas poderiam ter sido ainda melhores. Na altura não havia Internet, não havia satélites de televisão a bordo e as personalidades internacionais e portuguesas “poderiam ter sido mais”.
Então fez-se o possível com a tecnologia da altura, com os primeiros grandes diretos “quase” de Timor-Leste para Portugal, ainda que apenas com voz. E que só voltariam a acontecer oito anos depois, em 1999.
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