Senhor Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, muito obrigado por nos acolher neste santuário do conhecimento e da palavra;
Senhor Presidente do Observatório da Língua Portuguesa, muito obrigado por nos convidar a participar neste importante evento, o que muito nos honra.
O plural que aqui uso não é um plural majestático mas sim um que inclui todas as ONGD associadas da Plataforma que tenho o prazer de representar.
Ilustres colegas de painel,
Senhoras e Senhores,
Este painel trata de “A Sociedade Civil nas estratégias de afirmação da Língua Portuguesa”, o 6.º eixo de actuação dos 6 incluídos no “Plano de Acção de Brasília”. Estabelece este eixo que os Estados Membros da CPLP deverão (i) “fomentar o apoio da sociedade civil à execução de acções previstas no presente documento (Plano de Acção de Brasília), inclusive pelo estabelecimento de parcerias entre instituições públicas e privadas (…); (ii) estabelecer formas de cooperação entre instituições públicas e privadas para a elaboração e difusão pública de programas educativos e profissionalizantes em língua portuguesa; (iii) Contemplar, em projectos de cooperação técnica, parcerias com instituições da sociedade civil dos países da Comunidade para a difusão e valorização da língua portuguesa.”
Aqui está sintetizado o que espera a CPLP da Sociedade Civil no esforço necessário para a promoção e difusão da língua portuguesa. Impõe-se agora verificar se a Sociedade Civil tem os mesmos objectivos e os recursos esperados para assumir esse papel.
A Sociedade Civil de aqui falarei longe está de esgotar o seu conceito. Apenas represento as Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) Portuguesas associadas da Plataforma e é delas e da sua perspectiva, como componente fundamental na relação entre os países que falam português, que falarei. Fá-lo-ei em duas partes: (i) Que contribuições têm as ONGD portuguesas dado para a educação em português? (ii) O que pensa esta Sociedade Civil (as ONGD) desta forma de promoção e difusão da língua Portuguesa?
Ora então,
(i) Que contribuições têm as ONGD portuguesas dado para a promoção da língua portuguesa?
A língua portuguesa não poderá demonstrar com clareza a importância e o impacto que o trabalho das ONGD portuguesas tem tido ao longo dos anos na alfabetização, na educação, na formação e na cooperação em português. Para tanto seria preciso, no uso da língua portuguesa, ter a capacidade de vos levar a viajar no tempo e no espaço. Temos, pois, que terei que ficar pelos números que nos dizem, ainda assim, qualquer coisa. Apresento-vos apenas os dados dos projectos de educação em contexto de cooperação da responsabilidade das ONGD apoiados pelo governo português, entre 2002 e 2010[1]. Neste período e em todos os Estados Membros da CPLP, à excepção de Portugal e Brasil, 32 ONGD, desenvolveram 111 projectos (muitos deles plurianuais) envolvendo um total de 17.261.452, 68 €, 26% do total em todas as áreas temáticas em que as ONGD portuguesas trabalham. Destes 111 projectos, 26 foram desenvolvidos em Angola, 10 em Cabo Verde, 13 na Guiné Bissau, 48 em Moçambique, 5 em São Tomé e Príncipe e 10 em Timor Leste.
Trata-se de uma enorme e riquíssima diversidade de intervenções que vão desde o apoio à educação básica, à alfabetização de adultos, passando pela reabilitação de escolas, pela criação de centros de formação feminina, pela formação de professores, formação em língua portuguesa para organizações da sociedade civil, pela actualização pedagógica de professores do ensino básico integrado, pela criação de centros de recursos educativos, pela qualificação das mulheres e profissionalização da educação de infância, pela criação e dinamização de escolas familiares rurais, pela criação de centros de capacitação de formadores, pela educação para a saúde e educação cívica, pela formação em gestão e coordenação escolar, pela assistência técnica a escolas existentes, pela educação e apoio à criação de microempresas, pela promoção e divulgação da Língua Portuguesa nos contos tradicionais, pela criação de redes de bibliotecas escolares, entre muitos outros.
Desta rica panóplia de intervenções cabe destacar três elementos que consideramos essenciais:
1 – A constância da língua na Cooperação para o Desenvolvimento
Como disse Arnold Wesker: “A língua é uma ponte que te permite atravessar com segurança de um lugar para outro.” No contexto que aqui nos traz hoje, ousaria interpretar esta metáfora dizendo que é a língua portuguesa que torna as ONGD portuguesas cultural, comunicacional, física e emocionalmente próximas das populações com que trabalha. É a língua partilhada que nos une e que torna mais úteis os conhecimentos, os materiais e os recursos a partilhar. A língua comum aproxima-nos e permite-nos compreender a eficácia da sua utilização na ajuda mútua por comparação a outras línguas de outros povos. A língua é, pois, a ponte. Mas não é nenhuma das margens. Em cada uma das margens estão expressões de indignidade humana (a fome, a pobreza, a exploração e a desigualdade). E é para as denunciar e erradicar que serve a língua. Em cada uma das margens estão necessidades e oportunidades de desenvolvimento humano, social, ambiental, cultural, económico. E é para as concretizar que serve a língua.
2 – A língua é meramente instrumental
Moliére (um dramaturgo que vivia do uso das palavras) criticando a soberba e a arrogância da sociedade francesa do Séc. XVII aduzia sabiamente: “Eu vivo de boa sopa e não da linguagem.” Pergunto eu, retoricamente, ao Moliére, usando do mesmo sarcasmo que o seu: e como obteria a boa sopa sem a linguagem? Com efeito, a língua permite identificar os problemas, as possíveis soluções, criá-las e implementá-las. A língua (a sua promoção e difusão) não é a sopa. É o instrumento para a obter.
A promoção da língua não é, não pode ser, um fim em si mesma, “mas um factor promotor de desenvolvimento sustentável, de paz, de sociedades inclusivas, mais justas e democráticas e também de todos os direitos humanos, incluindo o direito ao desenvolvimento”[2]
3 – O investimento das ONGD tem sido sobretudo no software e não no hardware
A convicção das ONGD de que o desenvolvimento humano assenta essencialmente na capacitação e empoderamento dos mais frágeis é o que as tem levado a apostar no ensino, na formação, na transferência de competências e tecnologia, isto é, na construção e desenvolvimento do software humano e não tanto na construção de infra-estruturas (o hardware) que permitam ou facilitem o acesso a tais conhecimentos e competências. É que um edifício inicia o seu processo de degradação no dia em que é concluída a sua edificação. Uma aprendizagem humana começa a fruir a partir do dia em que é posta de pé.
A necessidade de resultados rápidos e quantificáveis que políticos e financiadores exigem, não é compatível com o investimento de longo prazo que exige a educação e o desenvolvimento humano.
Segue-se a segunda parte da minha intervenção que, recordo, pretendia responder à seguinte questão:
(ii) O que pensa esta Sociedade Civil (as ONGD) desta forma de promoção e difusão da língua Portuguesa?
Não há dúvida que o “Plano de Acção de Brasília” é um plano muito bem concebido para a promoção e difusão da língua Portuguesa. Oxalá venha a ser integralmente cumprido e surta os efeitos almejados. Contudo, afastando-me um pouco do Plano em causa e olhando para a realidade portuguesa, não posso, pelo referido no ponto anterior deixar de dizer que a muito meritório e necessária promoção e difusão da língua portuguesa, não pode ser feita à custa da redução da cooperação para o desenvolvimento, em vez da cooperação para o desenvolvimento ou através da cooperação para o desenvolvimento. Actualmente, a nova arquitectura institucional do sector demonstra-o claramente. A fusão do Instituto Camões com o IPAD, designando o novo instituto de “Camões”, figura iminente na história da língua portuguesa mas – permitam-me a ironia – não consta que fosse um promotor da cooperação, confirma desde logo esta estranha opção. Se dúvidas restassem, a própria tutela política sanou-as na Assembleia da República afirmando: “(….) assumo com toda a clareza que faço uma escolha: dou prioridade ao ensino da língua portuguesa no estrageiro face aos projectos de cooperação que temos no exterior (…)”
Seria esta escolha inevitável? Se tão saudavelmente conviveram e se interrelacionaram durante tanto tempo, por que razão se tem agora que se escolher a promoção da língua em detrimento da cooperação para o desenvolvimento, se têm fins diferentes? A promoção da língua portuguesa não combate a fome, não reduz a pobreza, não diminui as desigualdades, não inclui os excluídos.
Se assim fosse, isto é, se fosse a língua portuguesa medida – só por si – eficaz para a luta contra a pobreza, não estariam – como estão – alguns dos países da lusofonia tão baixos no ranking do índice de Desenvolvimento Humano da ONU e que falam o português há mais de 500 anos.
São 3 objectivos gerais da CPLP: um deles consiste na “cooperação em todos os domínios, inclusive os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, cultura, desporto e comunicação social”; e outro na “materialização de projectos de promoção e difusão da Língua Portuguesa, designadamente através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa.” Se fossem a mesma realidade não seriam elencados como objectivos distintos. Se fosse objectivamente necessária uma hierarquização de objectivos, essa teria sido feita nos Estatutos da CPLP.
Não foi só a CPLP que sensatamente não fez essa escolha. Outros não a fizeram também. Há ainda quem recomende, de forma autorizada, para que se não a faça. É o caso do CAD/OCDE que, no âmbito da última avaliação efectuada à cooperação portuguesa considerou tal escolha como um dois principais aspectos negativos. Diz o relatório (a tradução é minha) que: “Portugal deve clarificar que a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) que apoia o ensino e a educação em Português seja um meio para ajudar a conquista do desenvolvimento nos países lusófonos e não um meio de promover a língua portuguesa como um fim em si mesmo (…). Esta clarificação deve ser feita de modo a que toda a APD se centre nos objectivos de desenvolvimento.”
A língua portuguesa é, de facto, um activo valioso no contexto internacional a nível político e económico. Na verdade são “250 milhões de pessoas que falam português que representam cerca de 3, 7% da população mundial e detêm aproximadamente 4% da riqueza global. Os oito países de língua oficial portuguesa ocupam uma superfície de cerca de 10, 8 milhões de quilómetros quadrados, representando 7, 25% da superfície continental da Terra. É uma das três únicas línguas faladas em todos os continentes, a 4ª mais falada no mundo, a 6.ª mais frequente nos negócios e na internet”[3]
Tem, com efeito, grande peso no PIB mundial. Todavia, o PIB não representa senão o desenvolvimento económico. Como prova de que o PIB é um indicador de crescimento económico e não de desenvolvimento humano e social, serve, por exemplo, o elevado crescimento anual do PIB em países como a China e a Índia, contrastando com as elevadíssimas e enraizadas taxas de pobreza desses mesmos países.
Indiscutível o peso demográfico da língua portuguesa, o património cultural e civilizacional que acarreta e as potencialidades económicas do universo CPLP. Mas é com profunda convicção que defendemos que, a ter que se fazer a escolha (o que – repito – não é uma fatalidade) escolha-se a cooperação. Esta minha convicção não é (embora para mim bastaria) meramente empírica. Tem suporte científico: É que o barómetro de Calvet demonstra que quanto maior for o Índice de Desenvolvimento Humano, maior é a importância relativa de uma língua. Vejamos as lições da história: Portugal levou o Português aos 5 continentes. Ainda hoje, encontram-se vestígios da língua e da cultura portuguesas nos 4 cantos do mundo. Isso aconteceu por existirem mecanismos eficazes de promoção da língua ou foi possível devido ao elevado desenvolvimento do Portugal de então? Nos dias de hoje, promovermos o desenvolvimento humano, económico, social e cultural e fazê-lo em português, conferirá vantagem relativa à nossa língua, como outrora aconteceu.
“Aquilo que de todos faz um único homem é o inimigo”, dizia Romain Rolland e – digo eu – o nosso inimigo comum é a pobreza.
Estamos, pois, disponíveis para nesta comunidade de povos que é a CPLP (e noutras partes do mundo onde possamos contribuir para o fim das injustiças e das assimetrias) partilhar o que somos e o que temos (incluindo o património linguístico) para a promoção e difusão da dignidade humana.
Obrigado!
[1] Ficam de fora, pois, todos os projectos anteriores a 2002 e posteriores a 2010, os projectos não apoiados pelo governo português e aqueles que são de Educação para o Desenvolvimento, isto é, os implementados em território português.
[2] In “Entre o saber e fazer: a educação na cooperação portuguesa para o desenvolvimento” – Estudo promovido pela Coligação Portuguesa da Campanha Global pela Educação – Janeiro de 2012
[3] In “Potencial Económico da Língua Portuguesa”, obra coordenada pelo Prof. Luís Reto, ISCTE-IUL, 2012.