A morte venceu o mestre

Servidões, o novíssimo (e esgotadíssimo) livro do único poeta português vivo que verdadeiramente alvoroça a nossa pequena cena literária, é mais uma evidência a juntar ao “caso Herberto Helder”: o raro caso da entrega absoluta a um percurso artístico assumido como predestinação pessoal.

 

Aos 82 anos, Herberto Helder publicou um novo livro,  Servidões, e voltou a alvoroçar a cena literária como nenhum outro poeta português seria hoje capaz de fazer. A obra suscitou de imediato uma sucessão de notícias e recensões, e a edição, de cinco mil exemplares – um número pouco menos do que impensável para um livro de poemas – esgotou em poucos dias nas livrarias e também já não está disponível na editora (o volume tem a chancela da Assírio & Alvim, que pertence agora ao grupo Porto Editora).

O prestígio do autor, intensificado por décadas de uma exemplar recusa em contribuir para a nossa pequena feira das letras, ajudará decerto a explicar a expectativa com que foi recebido este seu novo livro. Mas, em boa verdade, o próprio livro bastaria para a justificar. Se A Faca Não Corta o Fogo (2008) reconhecidamente trouxera novas inflexões a esta poesia,  Servidões não é menos surpreendente. O que nele desde logo impressiona o leitor é a assustadora criatividade de que Herberto dá provas aos 80 anos, mas não é menos notável que estes seus últimos livros, com tudo o que trazem de novo, e por vezes até de exuberantemente novo, nem por isso deixem de manter com a sua obra anterior uma coerência sem falhas.

Ou, dito de outra maneira: a mestria verbal de Herberto Helder, responsável por esse efeito quase hipnótico que a sua poesia sempre produziu – e que milagrosamente sobreviveu à transição para o registo mais rugoso inaugurado em A Faca Não Corta o Fogo -, é, em sentido muito literal, fascinante, mas não o é menos a evidência de estarmos perante um desses raros casos de entrega absoluta a um percurso artístico assumido como predestinação pessoal.

Diferente em quase tudo de Fernando Pessoa, se alguma coisa aproxima Herberto Helder, cada vez mais obviamente o poeta central da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, daquele que desempenhou idêntico papel na primeira metade do século, será justamente essa ideia de predestinação, que em ambos é também um tópico da própria obra. “A cabeça ficara marcada, invisível, mas quando me deitava de costas, na escuridão, sentia uma queimadura na têmpora, a crosta fervendo por baixo, da nuca à testa. Interpretava-a como uma cicatriz que me acompanharia até à morte, o emblema de uma guerra assombrosa de que já esquecera os pormenores e o sentido”, lê-se no texto em prosa que antecede Servidões. E um dos poemas do livro abre com estes versos pungentes, de quem sabe que a estrela do génio, se ainda tem energia para inesperadamente voltar a brilhar, não o protegerá da velhice e da morte: “uma espuma de sal bateu-me alto na cabeça, / nunca mais fui o mesmo, / passei por todos os mistérios simples, e agora estou tão humano: morro, / às vezes ressuscito para fazer uma grande surpresa a mim mesmo (…)”.

Talvez passe por aqui a razão de Herberto Helder ter tido, desde cedo, dois tipos de leitores: os que suspeitavam que aquela beleza sumptuosa e aterradora poderia não ser isenta de alguma arbitrariedade, e os que nela intuíam uma coerência profunda, adivinhando que tudo ali batia implacavelmente certo. Em A Faca Não Corta o Fogo, o poeta escreve: “(…) paixão: tirar, / pôr, mudar uma palavra, ou melhor: ficar certo/ com a vírgula no meio da luz (…)”.

O tributo que Herberto paga pela sua fidelidade a essa espécie de predestinação, e simultaneamente a exigência que esta lhe coloca, é a necessidade de conquistar uma singularidade absoluta. Mais do que criar beleza – “sabe Deus quanto a beleza me custa e quanto o ganho é imponderável”, diz em Servidões -, talvez a verdadeira essência do seu trabalho, o propósito da sua arte, seja o de se tornar radicalmente único. É a essa luz que deve ler-se, por exemplo, o facto de, em diferentes poemas deste livro, Herberto se insurgir contra alguém que há muitos anos se apropriou de um “pequeno achado” seu, a expressão “rosa esquerda”, argumentando: “roubam-me um erro apenas que acertava só comigo”. Noutro poema evoca o pedido que recebeu para enviar um inédito para uma revista (“a revista onde colaboram todos”), e escreve: “E eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque/ nada se reparte: ou se devora tudo/ ou não se toca em nada/ (…) só colaboro na minha morte”.

Que língua é esta?

Para indagar o modo como alguns dos leitores mais qualificados de Herberto vêem a posição que Servidões vem agora ocupar nesse “poema contínuo” que Herberto vai constantemente reescrevendo, o Ípsilon ouviu poetas e ensaístas de diferentes gerações – Manuel Gusmão, Rosa Maria Martelo (que assina também um texto neste suplemento), Manuel de Freitas e Diogo Vaz Pinto -, cujas opiniões vêm somar-se às que o crítico António Guerreiro exprime nos textos que assina neste suplemento.

Os vários inquiridos revelam algum consenso na convicção de que este novo livro intensifica a inflexão mais áspera que A Faca Não Corta o Fogo já trouxera a esta escrita, mas também precisam que essa linha de continuidade não impede Servidões de ser “um recomeço”, para usar uma palavra que tanto Gusmão como Freitas lhe aplicam.

O próprio Herberto Helder, naquele que é, após um camoniano dístico de abertura, o primeiro poema do livro, coloca expressamente Servidões sob o signo de um renascimento: “saio hoje ao mundo, / cordão de sangue à volta do pescoço (…)”. Gusmão vê neste texto “uma certidão de nascimento”, a afirmação de “um novo recomeço aos 80 anos”, mas também nota que “esse recém-nascido” de que o poema fala “traz à volta do pescoço um cordão que o pode estrangular, que é uma ameaça e também uma marca do sofrimento e do trauma do nascimento”.

Para Manuel Gusmão, tanto A Faca Não Corta o Fogo (2008) comoServidões “são quase uma espécie de explosão inicial”. E se vê “diferenças assinaláveis” entre ambos os livros, interessa-lhe sobretudo pensar o modo como Servidões “coloca o problema da língua, a questão de saber qual é a língua desta poesia”. Uma pergunta que, lembra, Rosa Maria Martelo já tinha levantado em relação a A Faca Não Corta o Fogo, mas que este novo livro “vem tornar ainda mais pertinente”.

A poesia de Herberto Helder “manteve sempre com o português europeu uma relação impressionantemente viva”, diz Gusmão, mas em Servidões fica “definitivamente afastada qualquer ideia de pureza da língua”. Se já em A Faca Não Corta o Fogo o poeta “convocava outras línguas, como o francês”, e irritava os “puristas do português” com “efeitos que pareciam brasileirismos fonéticos e sintácticos”, neste novo livro “a sabotagem é agora feita do interior da língua, misturando contextos discursivos e linguísticos e alterando a hierarquia dos diferentes níveis de utilização da língua”. Um bom exemplo desse trânsito constante entre diferentes níveis de que fala Gusmão é o extraordinário poema que abre com o verso “cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo”, no qual um falecido Herberto Helder fala, na primeira pessoa, do destino dado ao seu corpo e à sua obra. Como se vê neste breve excerto, em poucos versos vai-se de “Deus” à “merda” e dos “esgotos” a uma “vita nuova” de ecos dantescos: “que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca, / o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos esgotos, / merda perpétua, / e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:/ vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo (…)”.

Há em Servidões “um vocabulário obsceno que era muito raro nos primeiros livros do autor”, observa Gusmão, e também “um léxico satírico” no qual o ensaísta intui “a presença de Mário Cesariny”. Gusmão elogia ainda a “audácia” de Herberto em deixar entrar na sua poesia palavras como “cuecas”, que surge num breve poema altamente aliterativo: “no mais carnal das nádegas/ as marcas/ das frescas cuecas”.

Logo a seguir ao texto em prosa que abre o volume, dois versos isolados, funcionando como uma espécie de epígrafe, parecem querer assumir um tom deliberadamente camoniano: “dos trabalhos do mundo corrompida/ que servidões carrega a minha vida”. Manuel Gusmão recorda que “sempre houve nesta poesia, desde os primeiros livros, toques camonianos”, e atribui o fascínio de Herberto ao facto de ter sido Camões que, em muitos sentidos, “inventou a língua em que a poesia portuguesa se escreve”. Mas a presença do poeta quinhentista neste último livro parece-lhe assumir contornos particulares: “Reconheço que ainda não pensei isto bem, mas é como se Herberto Helder viesse fechar o ciclo aberto por Camões, como se tivesse a audácia de se despedir de uma língua como quem se despede de uma vida, num momento em que estamos sob ocupação política”.

Rosa Maria Martelo também recorre ao já referido poema que Herberto terá escrito no seu 80.º aniversário, e cujo verso final é “iminente para sempre”, para sugerir que Servidões vem fechar a obra, mas fechá-la de um modo em que esse “poema perfeito prometido” citado no final de outro poema, esse “desejo absoluto de perfeição”, estará para sempre iminente no poema que fica feito”.

Um livro final

Diogo Vaz Pinto, poeta, crítico e co-responsável da editora Língua Morta e da revista Criatura, confessa que embora já gostasse da poesia de Herberto Helder antes de A Faca Não Corta o Fogo, não achava que esta fosse “uma espécie de revelação última”. Reconhecia-lhe o mérito de ter conseguido conciliar “a liberdade do surrealismo” com uma “disciplina” que não a deixava cair no “caos lírico”, e constatava que “depois de ler Herberto Helder continuava a ouvir a música, aquela voz ia ficando”. Mas foi o livro de 2008, ou mais precisamente o ter ouvido o livreiro Changuito, que entretanto se radicou no Brasil, a ler em voz alta alguns poemas de A Faca Não Corta o Fogo, que o deixou “abismado”: “Mais do que um poema, aquilo era um discurso político dirigido a uma comunidade, ao mundo, era alguém a ascender à condição máxima do humano para, chegado a essa altura, dizer uma coisa que vai para lá do literário e que tem uma humanidade profunda.”

E Diogo Vaz Pinto acha que esta dimensão política e cívica “está ainda mais radicalizada” em Servidões. “É um livro que interessa a muita gente que não se interessa por poesia, com indicações muito fortes para dentro e para fora da literatura, e também para o momento histórico que vivemos.” Para “a gente da geração de Herberto”, sugere Vaz Pinto, “estes últimos seis ou sete anos no mundo devem ter sido uma coisa incrível: já antes se via que isto ia por mau caminho, mas aí percebeu-se que estava tudo entregue à bicharada”.

Vendo em Servidões mais “um passo adiante” do que algo essencialmente diferente de A Faca Não Corta o Fogo, Diogo Vaz Pinto acha, ainda assim, que há agora “uma força testamentária”, um “dizer as últimas palavras” que não se sente no livro anterior. “Não importa se escreverá ou não outros livros, este será sempre um livro final.”

Partindo da ideia de que “a poesia é um discurso que está ao mesmo tempo antes e depois da História”, o autor de Nervo profetiza: “Estes poemas dizem-nos muito a nós que estamos a passar por tudo isto, mas no fim vão acabar por ser sobretudo um testemunho muito claro de como um poeta pode ascender a um verdadeiro estado de graça.”

E confrontando Herberto com Fernando Pessoa, diz que o segundo dominava a língua, mas que o primeiro “fez uma coisa mais interessante: construiu a sua própria língua a partir do português”. Esta noção de que Herberto, sem quebrar as amarras com o português, desenvolveu uma língua própria é partilhada por Rosa Maria Martelo, que chama a atenção para o modo como essa “conquista de uma gramática pessoal se vem mesmo intensificando nos últimos livros”.

Do demiurgo ao cidadão

O poeta e crítico Manuel de Freitas, co-editor da Averno e da revista Telhados de Vidro, onde Herberto publicara um dos textos que agora recupera na prosa que abre Servidões, está de acordo com Gusmão ao ver neste livro “um recomeço”, algo “extremamente improvável”, acrescenta, “quando se tem a idade e o percurso de Herberto Helder”. Também não se afasta muito dos restantes inquiridos, e sobretudo de Diogo Vaz Pinto, quando, recorrendo a duas expressões do próprio poeta, descreve a natureza desse recomeço como “uma substituição do “canto inteiro” por uma “fala cantante” mais rente à linguagem comum e ao mundo”, entendido “num sentido histórico e já não exultantemente atemporal”. Uma substituição que Manuel de Freitas considera “brutal”, dando como exemplo um poema de Servidões em que as mães, “tema obsessivo” da poesia de Herberto, “adquirem uma concisão aterradora”: “as manhãs começam logo com a morte das mães (…)”. E para se ver a dimensão da mudança de registo, sugere este excerto retirado do livroDo Mundo (1994): “áureas/ mães aracnídeas furando os ganchos nos tecidos suaves/ rasgando nos tecidos/ os orifícios/ vermelhos”.

A tese de Freitas, e nisto já começa a não coincidir exactamente com nenhum dos outros poetas e ensaístas ouvidos, é a de que Herberto Helder “chegara em Do Mundo a uma espécie de limite intransponível”, a partir do qual “não havia futuro para aquela música arrebatada e quase intemporal”. O mesmo Herberto que em Do Mundo reconhece que não pode “escrever mais alto” diz num verso de Servidões que quer “encontrar uma voz paupérrima”, nota Manuel de Freitas.

Após ter chegado em Do Mundo ao “grau máximo de beleza”, ao tal “canto inteiro” que, justamente por ser inteiro, “não era continuável”, Herberto Helder, lembra Freitas, não publicou nenhum livro durante muitos anos. Até surgir, em 2008,  A Faca Não Corta o Fogo, no qual vê “um retorno à “áspera beleza” e à “átona música mínima”” que, defende, “já se deixavam ler em certas passagens de Os Passos em Volta, de Photomaton & Vox ou até do renegado Apresentação do Rosto“.

O poeta de Game OverBoa Morte observa que essa “violência” que muitos têm detectado nos dois últimos livros de Herberto Helder, sendo “pouco habitual” na poesia anterior, sempre foi “omnipresente” na sua prosa. Mas o salto mais arriscado da sua tese é aquele em que sugere que assistimos, em A Faca Não Corta o FogoServidões, à “lenta e rude passagem do demiurgo ao cidadão civil”.

Fonte: Público

Foto: Herberto Helder – Luís Bernardes de Oliveira – nasceu a 23 de novembro de 1930 no Funchal. ALFREDO CUNHA / PORTO EDITORA / LUSA

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