Ajudar a não fazer nada

Há uns dias, em Maputo, deparei com dois jovens sentados no muro da minha empresa e a um deles perguntei o que. ele fazia ali A resposta veio célere:

– Não estou a fazer nada.

Fiz a mesma pergunta ao outro jovem que me respondeu com a mesma prontidão:

– Eu ? Eu estou aqui a ajudar o meu amigo.

Haver alguém que ajuda um outro a não fazer nada é do domínio da mais pura metafísica.

Lembro este episódio e penso na habilidade notável que os nossos povos partilham de produzirem este tipo de atitude filosófica. Coexiste em nós, lusófonos, uma certa sabedoria que nos diz que a felicidade se constrói, sim, mas que também se pode ser feliz só por preguiça. O destino, o fado, os deuses: esses são os autores dessa narrativa a que chamamos Vida.

Lembro este episódio para dizer o seguinte: nós não falamos apenas uma mesma língua. Nós sentimos de modo semelhante aquilo que não pode ser dito em língua nenhuma: o peso do Tempo, o sentido da existência, uma certa ideia da eternidade. O vazio do nada é algo que, em português, se preenche do mesmo modo em qualquer indolente muro de qualquer das nossas cidades. É nesse muro que nos sentamos para nos dedicarmos a esse desporto que, na nossa família linguística, é mais popular que o futebol: a saudade do que aconteceu, a lamentação do que podia ter acontecido e o lançar de culpas sobre o que não chegou a suceder.

Quando a lusofonia foi proclamada como um projecto supranacional houve interrogações que foram levantadas.

Eu mesmo questionei o sentido desse projecto numa realidade plural em que parte dos seus cidadãos não fala português ou fala português como segunda língua. Evidentemente que eu me posicionava tendo, sobretudo, em conta a realidade do meu país. Não seria justo inventarmos um patamar de cidadania que excluía, à partida, mais de metade dos moçambicanos.

A verdade é esta: apenas uma das nações de Moçambique já vive na lusofonia. Apenas parte dos moçambicanos já se reconhecem como falando e sendo falados pela língua portuguesa. Mas também é verdade que toda a grande nação moçambicana encontra no português a sua língua de construção, o idioma que a projecta num corpo unitário e que a torna capaz de viver na modernidade.

 

Intervenção de Mia Couto na Conferência Internacional promovida pela RTP
(19 de Junho de 2007, no CCB), sobre O Serviço Público de Rádio e Televisão no Contexto Internacional: A Experiência Portuguesa”

O escritor Mia Couto discursa durante a cerimónia em que foi agraciado com o doutoramento Honoris Causa pela Universidade Pedagógica, Maputo, 2 de setembro de 2015. ANTÓNIO SILVA/LUSA
O escritor Mia Couto discursa durante a cerimónia em que foi agraciado com o doutoramento Honoris Causa pela Universidade Pedagógica, Maputo, 2 de setembro de 2015. ANTÓNIO SILVA/LUSA
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