Nasci com esta língua agarrada à pele. Não sei se nela cresci ou se foi ela que me fez crescer. Bem vistas as coisas, no complexo novelo das preposições, todos os encontros são possíveis: nela cresci e cresci com ela, do mesmo modo que cresceu ela em mim; cresci por ela, também, e para ela, que tomei por rumo fazer dela uma espécie de modo de vida. Enfim, cresci com esta língua, ao mesmo tempo derme e epiderme de mim mesmo, ADN profundo da minha identidade.
Não fiz profissão de a pensar, ao contrário de tantos outros; mas nunca deixei de a pensar, o que não é necessariamente o mesmo. Talvez porque o destino me fez viver com ela em regime de comunhão de bens, porque me levou a escolher o estudo das suas raízes (as línguas clássicas) ou a ser por esse estudo escolhido (acho que nunca saberei bem ao certo se fui sujeito ou agente da passiva na escolha do meu rumo).
Enfim, aprendi, no compasso dos dias, a pensar com a língua e a pensar a língua. Antes da Linguística, que me entrou porta adentro nos bancos da Faculdade, e já depois dela. Nesses desvãos dos dias, tempos houve em que acreditei que o meu pensar a língua perdera razão de ser, por ser jurisdição alheia; convenceram-me de que esse pensar seria tarefa de linguistas, que manifestamente eu não era, por opção assumida ou, talvez, por opção desassumida. Passaram, entretanto, os anos; e, quando os anos passam, subimos encosta acima e começamos a olhar de mais longe o que, antes, só olhávamos bem de perto. O olhar de longe é, por via de regra, mais lúcido, mais agudo, menos sensível à “desfocagem da proximidade”. Quando olhamos de longe, ou do alto, vemos mais a floresta do que as árvores. Deve ter sido nessa altura que descobri que olhar a língua portuguesa – a língua que trago agarrada à pele desde que nasci – não é privilégio, muito menos exclusivo, de linguistas.
Convicção esta que mais se consolidou quando, andarilho da língua portuguesa e de suas geografias, comecei a deambular pelo mundo que fala português. E mais ainda quando os acasos da Fortuna me levaram até à China, mais concretamente até Macau, onde a identidade da língua portuguesa tem a estranha complexidade de ser a língua oficial de um território onde pouco ela se fala.
Qualquer português em deambulações pelo mundo que fala a sua língua (o meu caso não tem nada de original e é comum a tantos outros) apercebe-se, mesmo que não saiba traduzi-lo em palavras, que a língua portuguesa é, nesse mesmo mundo, raiz e destino, porque de ambos se faz o cimento agregador que lhe veio dando unidade e, se a tem, coesão.
Pensar a língua, portanto, fez parte desse deambular. Pensá-la no seu funcionamento, no diálogo que mantém na fábrica das línguas que é a Babel dos tempos modernos, se lícita é a apropriação reajustada da fábrica do mundo camoniana; pensá-la no seu crescimento, porque as línguas são como as árvores; pensá-la no seu rumo ou no que parece ser o seu rumo e seu destino.
Pensar a língua, enfim, a partir de pontos de observação múltiplos e diversos, no tempo e no espaço, o mesmo é dizer, vários na sua inserção no meu percurso pessoal de crescimento com a língua e vários no território ou territórios onde esse crescimento/rumo veio acontecendo.