Só os grandes desafios motivam as grandes empresas. Um desafio: retomar, pesquisar, reler, traduzir, organizar, fixar, rever, apresentar e anotar os milhares de páginas de um grande escritor. Uma empresa: fazer chegar até a um público alargado o resultado daquele trabalho, que se estendeu por alguns anos, envolveu muitas pessoas e teve o seu final feliz: trinta volumes densos e nítidos que são, a partir de agora, a ponte segura para acedermos à palavra do grande escritor. Repito: um grande desafio e uma grande empresa.
No momento em que é apresentada a Obra Completa do Padre António Vieira, realço, antes de mais, aquilo que tem que o ser: a conjugação de esforços de uma instituição promotora, a Universidade de Lisboa, de uma editora, o Círculo de Leitores, de uma instituição mecenática principal, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e de dois académicos, José Eduardo Franco e Pedro Calafate. Insisto: conjugação de esforços, enquadrados e apoiados por instituições científicas, coordenadoras e associadas, e por entidades do mundo cultural, universitário, económico e político que apoiaram a empresa, ajudando a que os arquitetos, os engenheiros e os operários erguessem a ponte que nos leva ao Padre António Vieira. Uma ponte de papel e de palavras, tornada possível, com os pilares firmes que exibe, porque os diretores desta Obra Completa do Padre António Vieira por certo aprenderam, no exemplo e no testemunho do grande jesuíta, a diplomacia, a capacidade de argumentação, a persistência, a abnegação, o impulso para o futuro e o sentido de entrega a uma causa. Tudo isso e sobretudo a confiança no poder das palavras, as deles e as que o Padre António Vieira nos legou.
Desse homem de palavras que foi o Padre António Vieira falou um dia um outro autodenominado homem de palavras, Vitorino Nemésio. Disse: “Bem puderam a arte barroca do sermão e o génio político de Vieira acorrentar a sua obra a motivos de ação urgente e politicamente persuasiva que sempre a sua prosa ficará como um monumento grandioso da língua portuguesa e do engenho neoclássico”. Várias personalidades em uma só, eis o que pode ler-se nesta admirável síntese: a do artista da palavra que Vieira foi, sendo também homem do seu tempo e da ação que ele lhe pediu, pregador de Deus e político interventivo, cidadão do mundo e refundador do idioma. Ou imperador da língua, na expressão do genial poeta, tão hábil como foi a cunhar fórmulas às vezes no limiar da banalidade.
Como foi possível ser tudo isso no breve lapso de uma vida? É verdade que ela foi longa, longuíssima até, se pensarmos no que eram as vidas humanas no século XVII. Ainda assim, insisto: como foi possível chegar a tanto como aquilo que se nos revela nestes trinta volumes? A busca da resposta (ou das respostas) para esta pergunta tem ocupado todos quantos, há longos anos, se consagraram a ler, a editar, a interpretar e a divulgar a obra do Padre António Vieira.
É justo referir, olhando para o passado próximo, alguns desses nomes, certamente correndo o risco das omissões injustas: João Lúcio de Azevedo, António Sérgio, Hernâni Cidade, João Mendes, Raymond Cantel, António José Saraiva, José van den Besselaar, Alcir Pécora, João Adolfo Hansen, Adma Muhana, Margarida Vieira Mendes, Maria Lucília Gonçalves Pires, Aníbal de Castro, Arnaldo Espírito Santo, José Pedro Paiva, Silvano Peloso, Mafalda Ferin Cunha, outros mais. A estes juntam-se agora os cerca de cinquenta investigadores que, articulando saberes provindos de várias áreas das ciências humanas, escreveram os longos e circunstanciados estudos que se encontram em cada um destes trinta volumes.
Em tudo o que foi feito e em todos os que o fizeram não falta, decerto, o “honesto estudo/com longa experiência misturado”, como disse uma outra estrela que, com Vieira, refulge na galáxia da nossa língua. Avisadamente andaram os organizadores desta Obra Completa do Padre António Vieira e os editores de cada um dos seus volumes, quando reconheceram (e disso tiraram ensinamento) o labor daqueles que os antecederam, na estrada sem fim nem horizonte à vista, por onde caminharam quantos leem e estudam o grande jesuíta.
Posto o que, cabe perguntar: o que falta fazer, depois desta empresa e das que lhe foram suporte? Se para alguma coisa nos serve ainda hoje (serve para muito, é claro) a lição de Vieira, é também para entendermos que o caminho não acaba, apenas são outros os caminhantes que o fazem. É daqui, da Obra Completa do Padre António Vieira, que hão de partir, de agora em diante, os que quiserem transitar pelas veredas da palavra vieiriana, sejam eles investigadores, estudantes ou os simples leitores que em Vieira buscam a lição de cultura e de espiritualidade que, num arco firme e certeiro, se estende do seu passado até ao nosso presente. E surpreender nessa lição os matizes de um discurso e os contornos de um rosto que incentivam novas aventuras exegéticas.
Dito de outro modo: um dos grandes fascínios que o Padre António Vieira ainda hoje exerce sobre quem dele se acerca provém da revelação do que foi uma vida feita palavra. Uma vida que muitos indagaram, quase sempre notando que o seu significado último reside justamente na forma como nela a palavra foi um elemento axial. Fonte e origem de tudo o que o Padre António Vieira quis ser, a palavra que ele serviu e de que se serviu foi, para os homens do seu tempo, o lugar central e o eixo que regeu uma existência de quase nove décadas, dividida entre vários lugares do mundo, alguns bem remotos, mesmo para as medidas de hoje.
Servindo poderes e resistindo a eles, dando testemunho da mensagem cristã e perscrutando o tempo futuro, falando aos homens e mesmo aos peixes quando os homens pareciam surdos, o Padre António Vieira foi, para além de tudo, um servidor da palavra. Foi ela que deu sentido à sua vida. Muito significativamente, no parágrafo que abre o estudo capital de Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, destaca-se isso mesmo: “O que mais impressiona nos escritos do padre António Vieira (…) é o facto de neles emergir, em modos vários, a consistência de uma personalidade e de uma vida: uma bio-grafia”. Por isso, os grandes estudiosos de Vieira têm sido sobretudo os seus biógrafos; por isso também, acrescenta a estudiosa, “é com naturalidade que a relação biografia-discurso se evidencia, e daí eu supô-la interveniente na dimensão estética e literária alcançada pela obra do pregador”.
Desta vida e da forma como foi vivida podemos hoje dizer: dava um filme. Mais do que um, deu dois, o de Júlio Bressane, a partir dos sermões, e o de Manoel de Oliveira, sobre a palavra e a utopia. Neste, o nosso mais celebrado cineasta e, como o biografado, não raras vezes profeta falhado na sua pátria, deu testemunho do que foi a existência, por entre luzes e sombras, do Padre António Vieira: enquanto ela durou, frequentou os salões da corte e devassou os mistérios da selva, conheceu a liberdade e o cárcere, os favores do poder e a sua ríspida vindicta, a incerteza das viagens e o perigo dos naufrágios, o estudo e a ação, a missionação e a diplomacia, a pregação e a aturada reflexão sobre os mistérios da mensagem bíblica.
É disto que se faz não só a imagem do Padre António Vieira, mas sobretudo o imaginário que dessa imagem se nutre, num lugar conceptual que confina já com o mito. Esse mesmo que Fernando Pessoa evocou, “no imenso espaço seu de meditar”, em que o pregador convive com D. Sebastião, “luz do etéreo”, e com “a madrugada irreal do Quinto Império”. Como se deles o jesuíta absorvesse a substância inefável do “nada que é tudo”.
Não foi, contudo, Pessoa ele mesmo quem melhor disse a vibração do encontro e do reencontro com a prosa vieiriana; foi o meio-Pessoa chamado Bernardo Soares, ao lembrar a “fria perfeição de engenharia sintática” daquela prosa. É quando, imediatamente antes do famoso passo sobre a língua como pátria (uma boutade prostituída por repetidas, descontextualizadas e mutiladas citações, ao gosto dos fregueses que dela se têm servido), imediatamente antes disso, o obscuro ajudante de guarda-livros lembrou a revelação fulminante do tal encontro iniciático. E disse: “Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política.”
Correr de água, disse Bernardo Soares e certamente bem, porque outro grande cultor da nossa língua, às vezes apressada e anacronicamente arrumado na gaveta do estilo barroco, confirmou a imagem do fluir, na “língua cheia de sabor e de ritmo” que foi a do Padre António Vieira: “A língua então era um fluxo ininterrupto. Admitindo que possamos compará-la a um rio, sentimos que é como uma grande massa de água que desliza com peso, com brilho, com ritmo, mesmo que, por vezes, o seu curso seja interrompido por cataratas.” Palavras de José Saramago, é claro, ele que, noutro texto e a propósito de Vieira como ramo da sua genealogia literária, declarou: “A língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu esse jesuíta”.
Os trinta volumes da Obra Completa do Padre António Vieira amplamente confirmam isto e dizem mais: dizem-nos que este foi um escritor plural, na aceção mais complexa e consequente do termo. Um polígrafo, termo talvez caído em desuso, mas que inevitavelmente reaparece, quando contemplamos estes milhares de páginas em que a epistolografia convive com a oratória, os textos proféticos com as relações de viagens e com os memoriais políticos, já para não falar nos textos poéticos e dramatúrgicos às vezes de autoria duvidosa.
Como escritor multiforme, Vieira revela-nos a sua impressionante cultura circulando por domínios autónomos que interligou e cujo diálogo favoreceu. Interdisciplinarmente, diríamos hoje, sem excesso nem favor, porque este foi também um homem do futuro, nos modos de pensar e de comunicar um saber esmagador, servido por uma memória seguramente prodigiosa. Foi também por força dessa vocação para a indagação plural, que a edição da obra completa de Vieira exigiu uma equipa multidisciplinar, convocando, entre outros, os saberes da filosofia, da teologia, da literatura, da linguística, da paleografia, da história e das línguas clássicas.
Detenho-me por um momento numa questão que para alguns pode, erradamente, parecer menor: a preparação de uma edição como esta é um trabalho de projeto, no sentido mais preciso, mas não raro descurado, que o termo encerra. Só quem nunca teve a responsabilidade de dirigir um projeto ambicioso ignora o que ele demanda a quem o coordena e a quantos nele participam: identificação e justificação do que se quer fazer, objetivos claramente estabelecidos, clareza e pertinência metodológica, recursos humanos, técnicos e financeiros competentes e bem proporcionados, ponderado calendário de execução. Tudo isso e também uma liderança efetiva, constante e reconhecida por uma equipa que trabalhe, de facto, como equipa. Não sei se era assim que o Padre António Vieira concebia, pregava e depois escrevia os seus sermões; mas sei que o resultado desta empresa mostra que ela foi pensada como projeto. E deu resultados, que é aquilo que todo o projeto, no final das contas (contas de vário tipo, é claro), tem que mostrar.
Mesmo não sendo uma edição crítica, a Obra Completa do Padre António Vieira revela o cuidado e a planificação que um projeto desta magnitude requer. Uma verdadeira estratégia editorial, em suma, envolvendo os vários componentes que estão à vista no resultado final, a saber: a orientação para um público definido, a noção de que esta edição cumpre uma determinada função e não outra, o estabelecimento de critérios de fixação textual ajustados a essa função, o ponderado dimensionamento de notas e de introduções. Remeto para o texto que especifica os critérios de transcrição textual; destaca-se aí a razão do leitor que rege esta edição, indo “ao encontro de uma grande diversidade de interesses, objetivos e formações de todos os potenciais leitores, facilitando-lhes o acesso ao texto.” Para isso contribuirá a escolha de uma chancela editorial capaz de levar estes trinta volumes até aos leitores que, reconhecendo já em Vieira um autor do cânone, podem agora acercar-se dele em função de uma outra aceção do termo cânone: a que se refere a um corpus textual autorizado, fixado e revisto. A obra de um autor, em suma. E de um autor que agora nos aparece, depois de tantas tentativas que o passado sepultou, no harmonioso vigor das três grandes colunas que sustentam o seu templo de palavras: a parenética, a epistolografia e a profética.
Termino, não sem antes realçar um aspeto (um entre muitos) que confere atualidade gritante ao Vieira que hoje podemos ler e reler, na sua obra completa. Relaciona-se esse aspeto com o facto de ter ele sido um viajante por muitos lugares e sobretudo um cidadão de dois continentes, aquém e além Atlântico. No Brasil que foi o seu e que então era o nosso, o Padre António Vieira cavou os alicerces para a construção de uma casa comum da língua. “Ninguém como António Vieira parecia predestinado (…) a ser o laço entre os dois mundos, o da Europa e do Brasil – terra que era também a sua, pela sua educação, pelo seu coração”, escreveu Eduardo Lourenço. Digo, então: Vieira antecipou, nesse laço que armou, uma outra história do futuro que é a de um espaço idiomático compartilhado por muitos. Essa partilha permanece e resiste, não tanto por causa dos homens, mas às vezes apesar dos homens que naquele espaço vivem.
Foi o Padre António Vieira, pelo muito que pregou e escreveu, pelo mundo que percorreu e pelas tantas e variadas gentes que conheceu, quem verdadeiramente fundou aquilo a que hoje chamamos, às vezes com exagero retórico, o universo da língua portuguesa; ou uma língua portuguesa como universo. Os testemunhos de Pessoa e de Saramago que antes citei (e os mais que poderia ter citado) dizem-nos isso mesmo, sem o afirmarem expressamente. Nem é preciso que o façam. A língua do Padre António Vieira, sendo o tal “correr de água porque há declive”, chegou até nós, expandida por outros rios, mudada mas conservada, a mesma e já outra.
Alberto Caeiro, o mais anti-Vieira dos heterónimos de Pessoa, escreveu: “Pensar no sentido íntimo das cousas/É acrescentado, como pensar na saúde/Ou levar um copo à água das fontes.” Ao contrário do que ele diz, levemos nós, de novo, um copo às fontes de Vieira. A água que delas corre tem o sabor da nossa sede.
Carlos Reis
3 de dezembro de 2014