A falar é que a gente se entende

Por cortesia de: Maria João Bourbon (texto) e Carlos Esteves (infografia), Revista E, Expresso

Está entre as cinco línguas maternas mais faladas do mundo. O português é idioma de mais de 290 milhões de falantes e estima-se que alcance 487 milhões no final do século
Quando tinha 28 anos e estava há apenas três no trono, o rei D. Afonso II escreveu aquele que viria a ser considerado um dos primeiros documentos em língua portuguesa. Conhecido como “O Gordo” ou “O Gafo” (o leproso), tinha desde a infância uma doença que lhe deformava a aparência e foi nesse contexto que, em 1214 e ainda jovem, decidiu redigir o seu testamento. Apesar disso, a afirmação do português face às restantes línguas ibéricas seria um processo moroso: de acordo com o livro o “Novo Atlas da Língua Portuguesa”, em 1656 ainda era necessário um alvará real para obrigar médicos e farmacêuticos a receitar e a aviar medicamentos apenas em português.
Hoje, a língua portuguesa é falada por mais de 290 milhões de falantes, de acordo com dados do Banco Mundial sobre a população dos Estados-membros que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Timor-Leste, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Os dados são apresentados pelo Observatório da Língua Portuguesa numa grande exposição online sobre a Língua Portuguesa, que pode ser vista em nove idiomas distintos no Google Arts & Culture, e que mostra ainda como o português está entre as cinco línguas maternas mais faladas no mundo (atrás de idiomas como o mandarim, o inglês e o espanhol) e as cinco mais utilizadas na internet.
Com estatuto oficial nestes nove territórios espalhados por quatro continentes (África, América do Sul, Ásia e Europa) — que, em conjunto, constituiriam a 10ª maior economia do mundo, com uma riqueza de €1,5 biliões, segundo o Fundo Monetário Internacional —, o português é o idioma mais falado no hemisfério sul. Será, aliás, no continente africano que se registará um maior aumento do número de falantes no futuro — só Angola e Moçambique terão, em 2100, mais de 260 milhões, ultrapassando o Brasil, de acordo com as Nações Unidas (ONU) —, num contexto em que deverão existir, em todo o mundo, mais de 387 milhões em 2050 e mais de 487 milhões no final do século.
O crescimento da língua portuguesa nos países africanos e o cada vez maior interesse por parte de falantes de outras línguas em aprendê-la ajuda a explicar a sua projeção internacional, adianta ao Expresso João Ima-Panzo, diretor de ação cultural e língua portuguesa do secretariado-executivo da CPLP.
“É ponto assente que o interesse por uma língua passa necessariamente pelo interesse que os outros possam ter com aqueles que a têm como língua oficial ou materna”, contextualiza. Sejam eles diplomáticos, económicos, comerciais, políticos ou culturais. “Fatores extralinguísticos relacionados com o desenvolvimento sustentável dos países da CPLP são cruciais para que possamos ter alguma credibilidade internacional em termos linguísticos. Questões relacionadas com educação, ciência e tecnologia, indústrias culturais e criativas estão diretamente associadas à promoção e difusão da língua portuguesa no contexto internacional e interno.”
Ainda assim, o português assume estatutos diferentes nos territórios em que é falado. “Em Portugal e no Brasil, em que é língua materna da generalidade da população, o português é ubíquo, afirmando-se em todos os domínios de uso, públicos e privados”, realça ao Expresso a Associação Portuguesa de Linguística (APL). Nesses países, falar português é fundamental para o exercício de uma cidadania plena (para usufruto dos direitos civis, políticos, económicos, entre outros), acrescenta João Ima-Panzo. “Já em países em que assume estatuto oficial, mas em que é língua segunda para a maioria dos falantes, o uso do português tende a predominar nos domínios públicos, isto é, nas comunidades de emigrantes portugueses e brasileiros (sobretudo) e o seu uso restringe-se à esfera privada”, continua a APL. Segundo a associação, é importante ressalvar que “nem todos os emigrantes preservam o uso do português no seio da família”, o que pode ser visto como um sinal “da perceção, tida por estes falantes, de que a sua língua materna não tem um valor suficiente que justifique a sua transmissão às gerações mais novas”. Ainda assim, o português é falado como língua materna ou segunda por pelo menos 7 milhões de pessoas na diáspora.
GEOGRAFIA DE UMA LÍNGUA
A geografia da língua portuguesa não se limita aos países que a utilizam como língua materna ou segunda. Decorre também do interesse que outros povos têm nela, medido nomeadamente através do ensino do português como língua estrangeira, seja por interesse pessoal ou pelo interesse desses povos em estabelecer um conjunto de relações diplomáticas, económicas, comerciais e políticas com alvos falantes de português ou até para usufruir dos produtos culturais dessa língua.
Em 2021, o Instituto Camões ensinava este idioma em 76 países, destacando-se o Senegal, Estados Unidos, Venezuela, Espanha, França, Suíça e China como aqueles em que o seu ensino tem registado um crescimento assinalável. A procura de cursos em português por parte de estudantes orientais, em particular na China, tem sido notória, tendo este país 47 universidades que ensinam português como língua estrangeira e cerca de 5 mil alunos a frequentarem esses cursos.
Além disso, e num contexto diplomático, o português já é idioma de trabalho e oficial em inúmeras organizações internacionais e regionais, entre elas a Organização dos Estados Americanos, Mercosul, União Europeia, UNESCO, Organização Mundial da Saúde, entre outras. E a CPLP estabeleceu como desígnio torná-lo idioma oficial da ONU.
Mas para que isso aconteça são necessários investimentos financeiros significativos, seja ao nível da aposta em recursos humanos qualificados (formação de tradutores) ou da aquisição de equipamentos para este fim. “Isto tem vindo a ser feito pelos Estados-membros da CPLP”, garante João Ima-Panzo. “Ao nível do ensino superior temos cursos de formação de tradutores em alguns países e creio que no futuro essa questão possa estar assegurada para que possamos ter o português como língua oficial da ONU.”
Além do capital reputacional que lhe está associado e da sua disseminação internacional darem à língua portuguesa “legitimidade para reivindicar um espaço neste fórum”, nas palavras de João Ima-Panzo, este seria “um marco importante do ponto de vista simbólico”, contribuindo para uma ainda maior afirmação internacional desta língua, complementa a APL.
A eventual oficialização do português como língua de trabalho teria efeitos positivos a vários níveis, a começar pelo interesse acrescido que muitos teriam em aprendê-la como língua não-materna”, explica a associação fundada em 1984 por um grupo de eminentes linguistas portugueses. “Como aprender uma língua é um meio para poder usufruir dos produtos culturais de que é veículo e para negociar (económica e politicamente) com quem a fala, um evento isolado como este poderia ter, na verdade, repercussões de cadeia muito relevantes.” Além disso, facilitaria o acesso à informação e a toda a documentação e decisões que são tomadas ao nível da ONU, podendo desencadear “um conjunto de possibilidades de empregabilidade (tradutores) e de negócio que os Estados-membros da CPLP poderiam aproveitar.”
Maria João Bourbon
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