A descoberta de nossling

Valentino Viegas

Nós, os portugueses, nascidos ou não no território à beira-mar plantado, que tantas vezes ouvimos os nossos compatriotas a falarem mal de Portugal ao comparar-nos, sarcasticamente, com outros países do mundo, não só devíamos ter consciência da nossa falta de conhecimentos como, sobretudo, nos sentirmos vaidosos e embevecidos quando alguém, numa aldeia recôndita da imensa Índia, diz com orgulho que o português é a sua língua.

Nunca é demais recordar que foi graças ao persistente empenho do meu amigo Homem Cristo Prazeres da Costa que o jornal O Heraldo, de Goa, introduziu uma secção semanal em português, a partir de 6 de Maio de 2020.

Os colaboradores desta meia página, cuja maioria vive em Goa, têm-nos brindado com vários artigos de qualidade, deixando-nos surpresos com a beleza de alguns textos literários, produzidos numa terra onde Portugal deixou de governar desde 18 de Dezembro de 1961.

Creio que o fazem por se sentirem dotados do espírito universalista, serem amantes da cultura e simpatizantes da língua portuguesa, independentemente da religião que professam, da nacionalidade possuída ou da direcção tomada pelos ventos da História.

É através da utilização predominante da língua portuguesa, acoplada à plataforma criada por Cristo, que se tem encurtado distâncias abraçando continentes; servido de ponto de encontro aos amigos desencontrados há muitos anos por circunstâncias da vida; matado saudades com recordações da juventude e revelado que é possível, com parcas palavras, escrever textos literários de substancial valor.

Todo este razoado introdutório vem a propósito do artigo do Padre Joaquim Loiola Pereira, intitulado “Korlai, onde o português é língua indiana.”

Foi em 2015 que visitou aquele “lugarejo”, mas só recentemente nos deu a conhecer a razão da visita e a importância do local.

Diga-se em abono da verdade que não se tratou de algo inédito, pois em 1996 J. Clancy Clements havia publicado o livro The Genesis of a Language: Formation and Development of Korlai Portuguese.

Apesar da existência deste louvável precedente, aquando da sua visita à aldeia de Korlai, com o objectivo de encontrar vestígios orais da língua portuguesa, ao escutar o linguajar dos habitantes locais, um dos méritos de Joaquim Loiola Pereira residiu no facto de não se ter preocupado, em demasia, com o estudo dos aspectos linguísticos do idioma falado, em termos etimológicos, semânticos ou outros, mas ter procurado ler nas palavras pronunciadas os sentimentos das pessoas.

Com esse tipo de abordagem despertou interesse e motivou os leitores a visitarem Korlai.

Acompanhado do Padre Sebastião Mascarenhas, quando avançaram a pé em direcção às ruas estreitinhas da aldeia, deixando a viatura nas redondezas, porventura iam ansiosos porque não deviam ter a certeza de se poder escutar, em estreitas vielas, palavras pronunciadas em português.

Sem contactos previamente estabelecidos, ao escolherem este tipo de pesquisa de risco assumido, não podiam ter tido melhor surpresa do que comprovar, logo à aproximação das primeiras casas, que até o cão percebia a linguagem de Camões, pois ao animal que ladrava incessantemente, anunciando a presença de intrusos, o dono da casa grita: “Fique calad! Fora vai!” E o animal, obediente, pára de ladrar.

Estabelecidos os contactos, os curiosos visitantes constataram que neste vilarejo com fortificação própria, situado no coração de Maharastra, vizinha da antiga fortaleza de Chaúl, “toda a gente, velha e nova, ainda fala português, ou aquilo que dela resta.”

Todavia, por estar cercada pelo marata, língua dominante, apuraram que “fora de Korlai, na escola, no mercado, no trabalho, falam todos o marata, mas em casa é sempre o crioulo português”.

Isso acontecia porque, embora as fortificações portuguesas tivessem sido abandonadas no século XVIII, houve casais europeus que preferiram permanecer no local assim como os descendentes das alianças matrimoniais realizadas entre europeus e mulheres locais, originando “uma curiosa comunidade luso-indiana” de cerca de oitocentas pessoas.

Ao se apresentarem como sacerdotes, tiveram as portas abertas e os vizinhos acorreram porque “este padre de Goa vei, quer ouvir noss combarsa; vem, combars faça.”

Nas diversas conversas entabuladas foi-lhes pedido para contar em português. Nessa altura, ouviram-se novos sons lusos naquele confim do mundo: “um, doiz, trez, catr … disnov, vint, vintaum, vintadoiz, vintatrez.”

Para os sacerdotes goeses, a musicalidade das sonoridades posteriores ganharam ainda maior relevo e uma doçura especial, por terem comprovado que uma das bandeiras da expansão portuguesa, a difusão da fé católica, também estava presente em Korlai, pois em resposta a uma pergunta repetiram dizendo “Rezar, sim: em nome do Padr, do Filh, do Esprit Sant Amén.”

Perante este testemunho religioso, o Padre Joaquim sentiu um nó na garganta, pois acabara de presenciar que “falavam em português também com Deus!”

Visitada aigreja, Nicolau, o mestre do canto deste pequeno templo de Korlai, explicou que, para a realização das missas, o padre vinha de “Bombaim” e só falava marata, mas o canto litúrgico era em nossling. Os visitantes observaram que as páginas do manual do canto estavam escritas em caracteres indianos, ou seja, o português encontrava-se escrito em devanagárico.

No decorrer da frutuosa visita, os dois padres, depois de contactarem e dialogarem com numerosos populares, cruzaram-se com miúdos a jogar à bola. Pela sua importância não resisto em transcrever, na íntegra, o texto que retrata as interlocuções então estabelecidas:

«Chegámos a um espaço aberto onde estavam poucos miúdos a jogar à bola. Sons familiares, mais uma vez: “Pass, passaqui! Burr donde! Depress! Merd!” Parámos e chamámos pelos garotos. E perguntámos, em modesto marata: “que língua é esta que vocês estão falando?” “Nossling,” disseram. “Nossling?” – Repetimos. “Sim, Nossling, Purtuguêz!” – “Purtuguêz??? Que é isso: alguma língua estrangeira?” – Indagámos. Houve um protesto geral! Um deles pontificou, em bom inglês: “Purtuguêz is an Indian language!”»

Se servirmos o exemplo da descoberta de nossling em Korlai, podemos inferir que os amantes da lusofonia têm um vastíssimo campo para desbravar por esse mundo fora, porque a riqueza de Portugal não está apenas no presente mas, sobretudo, no seu passado grandioso, que devia encher de orgulho todos os portugueses.

Volvidos tantos séculos após a gesta dos descobrimentos, para se cumprir Portugal, falta ainda aos afoitos portugueses partirem à descoberta das marcas identitárias deixadas pelas almas lusitanas espalhadas pelo mundo.

Historiador

Ler o artigo em “Diário de Notícias”

Veja:

Línguas de Base Lexical Portuguesa

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