A criança é paraíso, a criança é utopia, a criança é promessa.
As religiões e as civilizações, de um modo geral, observam o universo da criança com especial simpatia e carinho. Grandes textos fundadores das religiões fazem da infância a fase da vida mais privilegiada para viver e exprimir mais autenticamente a fé e a harmonia entre o meio humano, o meio divino e a comunhão com a natureza. “Da boca dos pequeninos e das crianças de peito fizestes sair o louvor perfeito” (Mt 21, 16; Sl 8, 3), conforme um salmo bíblico recordado por Jesus de Nazaré, constituindo a infância como o modelo da vida religiosa mais genuína.
Com efeito, a infância tendeu e tende, como denominador mais recorrente no quadro das heranças culturais da humanidade, a ser apresentada como um tempo singular, a fase etária da transparência espiritual e psicológica, em que o ser humano ainda não foi toldado pelos fatores sociais, pelos costumes que o corrompem e o tornam menos autêntico nas relações com os outros e com o universo sagrado.
A infância tende, pois, a ser apresentada como referência positiva e como utopia da vida espiritual e, em alguns casos, da vida social. O mundo da infância tem potencialidades simbólicas extraordinárias, que a cultura das religiões soube explorar no quadro dos programas de vida que propõe, tendo como horizonte o aperfeiçoamento humano, a construção de uma humanidade melhor. A experiência da infância é avocada para simbolizar o paraíso perdido, a infância da humanidade, a idade de ouro primigénia da história, para onde se deseja retornar ou que se pretende reconstruir de forma perfeita: a idade em que o lobo brinca com o cordeiro e o menino recém-nascido mete as mãos na toca da serpente e não será mordido, como sonha uma passagem do profeta Isaías (cf. Is 11, 6-9), idealizando a era messiânica de paz e fraternidade entre todos os seres criados.
De algum modo, aqui reside o paradoxo da ideia de criança como ideal do passado a recuperar, como utopia a realizar e como promessa a cumprir. A criança é representada, com efeito, entre o modelo ideal e a representação do inacabado, do prometido em ordem a uma realização maior.
As extraordinárias potencialidades naturais e simbólicas da criança e do seu universo imaginante e imaginado fazem do tempo infantil um tempo privilegiado, um tempo de promessa por excelência. É a promessa do futuro da humanidade, da sua continuidade e da aspiração a uma vida melhor. É a promessa do amadurecimento individual e coletivo.
Todavia, a criança e o seu universo, enquanto promessa e espaço de inocência, são marcados por uma enorme sensibilidade e fragilidade, que sempre requereu e continua a requerer, cada vez mais, da parte da cultura normativa instrumentos de proteção e cuidado social, moral, espiritual. A vulnerabilidade da infância torna-a um alvo fácil das tentações, dos vícios e dos desmandos dos adultos. Por isso, a grandeza de uma sociedade e, mais ainda, de uma civilização mede-se, em grande medida, pela forma como acolhem e protegem a promessa extraordinária que uma criança é. Hoje em dia, o mundo da criança está sujeito a perigos e a ataques de toda a ordem, que importa acautelar. As religiões e a cultura que geraram tiveram especial atenção à proteção das crianças e ao seu crescimento saudável em todos os planos. A sabedoria das religiões e das civilizações que modelaram é, sem dúvida, uma fonte de referência para a dignificação da criança no nosso tempo cheio de contratempos.
Nota: Boa parte deste texto foi preparado para servir de base à “Introdução” da Celebração do Tempo 2021 – Calendário Inter-Religioso, publicada pelas Edições Paulinas com o apoio do ACM- Alto Comissariado para as Migrações.
José Eduardo Franco
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