[Pergunta] Segundo li algures, a Sociedade para a Língua Alemã (desconheço como será a palavra em alemão) propôs o feminino “chancelerina” para a nova primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel. A questão que levanto é se, de facto, em português, o feminino de chanceler é mesmo chancelerina ou, antes, “a” chanceler.
Recordo que, entre nós, a embaixatriz não é propriamente o mesmo que a embaixadora, assim como há mulheres (caso das já falecidas Natália Correia e Sophia de Melo Breyner) defendendo que a mulher poeta se deve intitular “a” poeta e não a poetisa.
[Resposta] A página do Duden (o dicionário que é a fonte prescritiva da língua alemã) apresenta o termo Bundeskanzlerin, feminino de Bundeskanzler (à letra, «chanceler da república federal»), como a palavra do ano em 2005, o que confirma a sua novidade. No entanto, um dos elementos da formação de Bundeskanzlerin, a palavra Kanzlerin parece usar-se há mais tempo, porque em alemão é produtiva a formação de substantivos femininos por meio da adição do sufixo -in à designação de cargos que antigamente eram só ocupados por homens: assim como se forma o feminino Rektorin, «reitora», a partir de Rektor, «reitor», também se pode criar Kanzlerin, que é feminino de Kanzler.
Quanto ao português, solicitei a opinião de mais consultores, a quem agradeço o auxílio.
Assim:
— José Neves Henriques considera que o vocábulo “chancelerina” é pronunciável em português, dada a maleabilidade da nossa língua. Aconselha, no entanto, o feminino “chancelera”: «Essa é a regra geral na formação do feminino, em português – o acrescento da vogal a. Se tivessemos cá o cargo de chanceler, ocupado por uma mulher, o mais natural era o povo chamar-lhe “chancelera”.» E dá outros casos similares de cargos ou profissões antes só de homens e agora, cada vez mais, exercidos no feminino: primeira-ministra, bombeira, agrimensora, juíza, etc.
— F. V. Peixoto da Fonseca define chanceler como nome comum aos dois géneros, advertindo que “chancelerina” tem o sufixo -ina, que é aportuguesamento do sufixo alemão “-in”. «Além de achar inestéticas tanto a forma chancelerina (até soa a lamparina…) como a forma “chancelera”».
— D´Silvas Filho tem a mesma posição: «Como substantivo comum aos géneros, o feminino tem de ser a chanceler, até porque penso que “chancelerina” e “chacelera” são redutores da elevada missão do cargo. Não me repugna nada que em casos especiais as mulheres se apropriem do nome até aqui reservado por sistema ao sexo masculino dado o cargo ser por hábito ocupado por homens. Assim, aceito perfeitamente que se diga que uma senhora é `a presidente´ ou `a chefe´, passando, por isso, nesse caso, a ser comum de dois o género do nome. E há várias terminações de palavras com essa propriedade (ex.: o/a agente, o/a camarada, o/a colegial, o/a jovem, o/a mártir). É perfeitamente legítimo. O sexo masculino não é dono de palavras. Ninguém é. Lembremos que `poeta´, uma das supremas palavras que caracteriza o espírito humano, já se sublimou sem género.»
— Edite Prada observa que “chancelerina” está a ser usada esporadicamente, pelo menos, pelo que atestam quatro ocorrências da forma obtidas pelo pesquisador Google em páginas portuguesas.
Pela minha parte, devo acrescentar que Rebelo Gonçalves regista os substantivos masculinos chanceler e chançarel, este último um arcaísmo. Não há indicação de formas femininas, o que se compreende já que só recentemente é que surgiu a necessidade da palavra, com o aparecimento de Angela Merkel como chanceler ou “chancelerina” da Alemanha. Rebelo Gonçalves regista “chançarina” e “chançarona”, que têm alguma semelhança fonética, mas que infelizmente têm um sentido muito diverso: indo consultar o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete, vê-se que esses nomes femininos são sinónimos que significam «peixe semelhante ao pargo que se pesca no mar de Sesimbra».
Onde encontrar então uma base com tradições portuguesas que permita a constituição do feminino chanceler? Na própria palavra chanceler, formando-se um feminino com o morfema deste género, -a, e obtendo “chancelera”? Custa-me aceitar tal forma, talvez porque nunca a ouvi.
Surgem, portanto, algumas dificuldades na formação do feminino de chanceler dentro das possibilidades oferecidas pelo actual funcionamento da língua. A alternativa, que eu chamaria mais filológica, seria procurar soluções em fases mais antiga da língua. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, dá-nos algumas pistas: em português já houve, além de “chançarel”, as formas “chancerel” e “chançaleiro”, todas derivadas do francês “chancelier”; “cancellario” do latim `cancellariu´, «porteiro»; e “canceler” pelo italiano “cancellière”. Qual poderia ser a forma apta para base do feminino? Parece-me que é “chançaleiro”, do qual se poderia derivar facilmente “chançaleira”. No entanto, esta solução também não é satisfatória, por motivos óbvios: a raiz arcaica chançal- diverge do termo hoje em uso, i. e., chanceler.
Resta então regressar a chancelera, a chancelerina e a chanceler, como nome uniforme, se se pretende usar o feminino de chanceler. Todas me parecem possíveis e duas estão a ser realmente usadas, chanceler («a chanceler») e “chancelerina”. Esta última não é de rejeitar; basta lembrar que maestro tem como feminino maestrina. Contudo, calculo que os mais puristas terão reservas quanto ao emprego de uma forma que é sugerida pela forma alemã (“Kanzlerin” – “chancelerina”). Fico à espera que surjam mais “chancelerinas” – no discurso falado e escrito em português.
Carlos Rocha :: 23/12/2005
Fonte: Ciberdúvidas
Foto: LUSA A chanceler alemã Angela Merkel, 12 de Novembro de 2012. MIGUEL A. LOPES / LUSA