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Artigo de José Eduardo Agualusa, publicado no jornal O Globo, do rio de Janeiro em 3/04/21
Na passada quarta-feira, morreu em Luanda, vítima da atual pandemia, o poeta angolano Arlindo Barbeitos. Poucos dias antes, em 20 de março, falecera a sua esposa, Maria Alexandre Dáskalos, poetisa ainda mais interessante (embora menos conhecida) que o marido, com uma vida carregada de intenso drama, violência e amargura.
Arlindo tinha 80 anos. Maria Alexandre, 64. Arlindo exilou-se na República Federal da Alemanha nos anos 1960. Os seus primeiros poemas foram escritos em alemão, língua que falava como se sempre tivesse sido a sua. Foi também na Alemanha que tomou contato com a poesia tradicional chinesa e japonesa, influência decisiva em toda a obra que publicou. Foi guerrilheiro, combatendo o exército colonial português, tendo regressado a Luanda pouco antes da independência. A sua poesia sucinta, só nervo e espanto, misturava, com estudada ironia, as tradições da África e do Oriente: “Catatos (um tipo de lagarta) / em haste verde // baloiçando: // cacos de arco-íris em tarde de chuva.”
Maria Alexandre vinha de uma linhagem de poetas e de combatentes (e de poetas combatentes). O pai, Alexandre Dáskalos, foi um nome relevante da poesia nacionalista angolana dos anos 1950, poesia esta que antecipou, adivinhou e preparou o movimento revolucionário que, de armas na mão, viria a derrotar o colonialismo português. O primeiro Dáskalos a surgir em Angola foi um grego de Alexandria (no Egito), que, após combater as tropas britânicas na África do Sul, na Segunda Guerra dos Boéres (1899 – 1902), acabou se exilando nas terras altas do Huambo — onde eu nasci. O nome Dáskalos, que significa professor em grego, terá sido uma alcunha que recebeu devido aos dotes oratórios.
Atacada por um grupo de soldados, na primeira fase da guerra civil, Maria Alexandre sofreu um surto psicótico, sendo internada num hospício em Luanda. Isto em plena época revolucionária, quando a larga maioria dos pacientes era constituída por jovens militares, com traumas de guerra, e os psiquiatras, quase todos russos, mal conseguiam pronunciar uma palavra em português. É deste período que datam alguns dos poemas mais intensos e perturbadores do primeiro livro de Maria Alexandre: “O Jardim das Delícias” (referência ao famoso tríptico de Hieronymus Bosch que, em parte, retrata o inferno).
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Poemas de Maria Alexandre Dáskalos
E AGORA SÓ ME RESTAM
E agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz — esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.
Os deuses não assistiram a isto.
* * *
talvez o nosso corpo
seja pequeno
para ser a casa
do amor
que não guarde só indícios
e
não troque só sinais e entregas
que não seja tranquilo
nem fiel à rosa
e ao fio da lâmina
* * *
cheguei às portas secretas
atravessei as passagens interditas
e
no labirinto que negou os meus passos
vi tesouros que não eram meus
* * *
Ali estão elas de cabelos brancos
lisos ou em tranças apertados.
Ali estão elas suspensas sem um suspiro,
sem uma lágrima.
Os cabelos brancos gritam
gritos alucinados.
* * *
Poeta, somos filhos da diáspora
olhamos para trás e desfilam
os que amamos.
Os deuses abandonaram-nos –
– é conhecer o desespero
e saber
que uma mulher ajoelhada
não os faz regressar.
* * *