Somos todos parentes uns dos outros

Não há genes portugueses. O que os portugueses têm é uma mistura notável de genes com as mais variadas origens. Se há algo único, ou quase único, em nós, é essa mistura genética. E nada o faria prever se nos lembrarmos que o homem moderno, vindo da África, depois de ter chegado ao Médio Oriente se dirigiu à Oceânia e à Ásia e só mais tarde veio para Ocidente.

A Europa é uma península da Ásia. A Ibéria é a península na ponta da Europa. Nós, Portugal e Galiza, estamos no extremo mais ocidental dessa península, a ponto de haver uma Finisterra, lá em cima que, apesar do nome, não é tão ocidental como o nosso Cabo da Roca.

Pelas leis da genética populacional deveríamos ser mais homogéneos, mais monótonos em termos genéticos que os outros povos europeus. E não somos.

Intervenção do Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Prof. Doutor Manuel Sobrinho Simões
Porto, 10 de Junho de 2017

 

Foi com muito gosto embora, valha a verdade, não sem algum receio que aceitei o convite do Senhor Presidente da República para presidir à Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

O gosto é ampliado pelo facto de este ano as Comemorações se realizarem no Porto e se estenderem ao Rio de Janeiro e a S. Paulo. Sou orgulhosamente portuense e muito apegado ao Brasil e às suas gentes.

Não resistindo à utilização de expressões consagradas, é notável como a decisão do Senhor Presidente da República se adapta a esta localização magnífica, na “Ocidental praia lusitana” “De onde houve nome Portugal”, a imaginar o Brasil lá ao longe.

Neste dia comemoramos os Portugueses estejam onde estiverem. Comemoramos um coletivo num dia que já foi o Dia da Raça. Felizmente abandonou-se essa designação. É errado pensar numa raça portuguesa, como numa raça espanhola, francesa, ou outra.

Mas, se não há uma raça portuguesa, há um Povo com características genético-culturais sui generis que somos nós, os Portugueses.

Não estou a sugerir que há genes portugueses. Não há. Existem doenças transmitidas por genes alterados que surgiram em portugueses e, depois, fruto da nossa diáspora, se espalharam pelo mundo.

Foi o que aconteceu com a doença dos pezinhos, identificada por Corino de Andrade, que é possível encontrar hoje no Japão, na Irlanda e em outros locais mais ou menos recônditos da Terra. A doença chegou a esses países no século XVI através de variadíssimos tipos de portugueses errantes, fossem jesuítas ou marinheiros da Póvoa de Varzim recrutados para a Armada Invencível de Filipe II de Espanha e naufragados perto das ilhas britânicas.

Foi o que aconteceu, também, com a doença de Machado Joseph, conhecida popularmente por doença do tropeção, iniciada na ilha das Flores, nos Açores e “levada” por emigrantes nos séculos XIX e XX para a América do Norte e o Brasil.

E, mais recentemente, com uma alteração genética causadora de cancro da mama hereditário que tendo surgido numa família portuguesa encontramos hoje não só em Portugal como também em França e noutros países.

É interessantíssimo verificar como a dispersão destas doenças transmitidas por alterações genéticas de compatriotas reproduzem os padrões das (e)migrações portuguesas.

Mas não são estes os genes a que me referia quando falei em características genéticas portuguesas. Estes não são genes portugueses – são genes humanos alterados que, por azar, ocorreram em portugueses e, depois, o nosso comportamento migrante espalhou pelo mundo.

Não há genes portugueses. O que os portugueses têm é uma mistura notável de genes com as mais variadas origens. Se há algo único, ou quase único, em nós, é essa mistura genética. E nada o faria prever se nos lembrarmos que o homem moderno, vindo da África, depois de ter chegado ao Médio Oriente se dirigiu à Oceânia e à Ásia e só mais tarde veio para Ocidente.

A Europa é uma península da Ásia. A Ibéria é a península na ponta da Europa. Nós, Portugal e Galiza, estamos no extremo mais ocidental dessa península, a ponto de haver uma Finisterra, lá em cima que, apesar do nome, não é tão ocidental como o nosso Cabo da Roca.

Pelas leis da genética populacional deveríamos ser mais homogéneos, mais monótonos em termos genéticos que os outros povos europeus. E não somos.

Pelo contrário. Somos de uma extraordinária diversidade genética porque incorporámos, ao longo de séculos, judeus e berberes vindos de Espanha e do norte de África, porque nos misturámos com árabes, porque tivemos escravatura de povos da África subsariana no nosso país e nas colónias, com uma grande expressão e durante centenas de anos.

E também porque fomos através do mar para tudo quanto era sítio na África, na Ásia e na América do Sul e de lá voltámos com filhos e, sobretudo, com filhas.

É assim que se compreende que a população portuguesa tenha grandes percentagens de diversas linhagens genéticas, sobretudo de origem materna. Há diferenças regionais mas o que impressiona é a consistência com que temos muito mais mistura de genes que os nossos vizinhos.

Somos tão diferentes neste aspeto que há bastantes mais linhagens ameríndias, africanas e judias no Minho do que na Galiza. Eu, por exemplo, e perdoe-se-me a personalização, tenho cerca de oito por cento de linhagens ameríndias e três por cento de linhagens africanas.

E o mesmo se passa em relação aos judeus sefarditas cuja influência em Portugal foi enorme. No Hospital de D. Lopo que precedeu o Hospital de Santo António, aqui no Porto, havia um quadro composto por um médico e um cirurgião (sorgião) que eram obrigatoriamente cristãos velhos e tomavam conta dos doentes. Não deveriam ser os mais competentes pois o primeiro Regulamento do hospital, publicado a 2 de Janeiro de 1593, estipula que “o Provedor chamará os outros médicos da cidade para juntas, ainda que não sejam cristãos velhos, quando surgir algum caso grave”. A necessidade fazia esquecer os preconceitos e, quem sabe, terá sido esta uma das razões para a excelência da medicina no Porto.

O ponto que estou a procurar salientar é que a incorporação de genes foi acompanhada pela incorporação das respetivas culturas, criando uma sociedade de gentes muito variadas, de comportamento bastante plástico, tolerante em termos religiosos, avessa aos extremismos pseudocientistas que irrompem um pouco por todo o lado.

Uma sociedade que deveria entender, como poucas, o problema dos refugiados. Deveríamos ser capazes de integrar gentes que se vêem obrigadas a fugir de casa, comportando-nos como uma comunidade inclusiva e solidária. Uma comunidade que tem de perceber o valor sociocultural, económico e até demográfico da integração dos migrantes. Somos uma das sociedades com menos filhos do mundo.

A variedade genético cultural que tenho vindo a acentuar encontrou um terreno propício para o seu desenvolvimento nos montes e vales de grande parte do território português, onde coexistem elementos mediterrânicos e atlânticos, na síntese de Orlando Ribeiro.

Tudo isto, mais a localização periférica, a história, a geografia, o clima, a religião… criou uma sociedade de elevadíssimo contexto, caracterizada muito mais pela importância dos laços de sangue – somos todos parentes uns dos outros – do que de propriedade. Continuamos, infelizmente, demasiado individualistas e ainda não somos uma sociedade de contrato. Lá chegaremos, espero.

Apesar de termos hoje ainda meio milhão de portugueses que se exprimem mal em termos de escrita – muitos deles riquíssimos de saber – apesar disso, dizia, temos dado passos de gigante na educação, na saúde, na ciência e na inovação.

Vale a pena lembrar que por ocasião do 25 de abril tínhamos níveis de analfabetismo semelhantes aos da Suécia 100 anos antes. E que ainda há pouco tempo os velhos de Vale de Papas, na serra de Montemuro, usavam o verbo sentir como sinónimo de saber. “O senhor sabe como é o mar? Não senhor, isso eu não sinto…”.

Repito, o nosso grande capital são as pessoas. Em Lisboa, como na Serra de Montemuro… Avançámos muito na saúde, na ciência, na inovação, na educação, e em alguns destes domínios somos já competitivos a nível internacional.

Nos últimos tempos trabalhei com professores e alunos das escolas de Arouca, Serra da Arga e Lima, Famalicão e Monserrate, assim como do Politécnico de Bragança e da Universidade da Beira Interior e, em todos estes sítios, encontrei qualidade e vontade excecionais.

Foi propositadamente que citei instituições ditas periféricas, do interior do País. Sem pôr em causa a necessidade de apostarmos, a sério, na descentralização, penso que Portugal é demasiado pequeno para tolerar bairrismos de qualquer tipo.

Mesmo aqueles bairrismos que se escoram na ideia de que “o Porto é uma nação”. Não é, apesar de ser verdade que o Norte e o Porto continuam a ser um motor fundamental para o desenvolvimento do País.

A este propósito quero deixar uma nota de saudade. Tivemos este ano a perda de algumas personalidades ímpares, entre as quais Mário Soares, Daniel Serrão, Miguel Veiga, João Lobo Antunes. Todos portugueses de eleição e todos, também, quando não de solo ou de sangue, portuenses de coração.

E volto assim às pessoas. Precisamos de apostar nas pessoas e associar essa aposta à centralidade do trabalho e à sua dignificação.

E temos de ser exemplares, de cima para baixo, na organização social e na seleção das lideranças. O privilégio tem de ser acompanhado de responsabilidade.

Precisamos de vencer a fragmentação do minifúndio através de políticas que estimulem parcerias público/públicas e reforcem as instituições. Portugal precisa, cada vez mais, de instituições fortes como são as Forças Armadas e a Igreja. Instituições fortes que criem oportunidades, recompensem o mérito e potenciem a capacidade do saber fazer.

Temos também de continuar a apostar na educação, a todos os níveis, usando a sabedoria chinesa que diz que “quem quer ter colheitas no ano seguinte, semeia; quem quer resultados a dez anos, planta árvores; mas aqueles que apostam mesmo no futuro, a cem ou mil anos, o que fazem é ensinar, educar, formar”.

Graças a nós e às nossas circunstâncias, temos todos os ingredientes, dos genéticos e ambientais aos socioculturais e tecnológicos, para aproveitar, pela positiva, os tempos difíceis que se vivem na Europa e no mundo.

Os nossos netos não nos perdoarão se desperdiçarmos a oportunidade.

Usando a fórmula de João Bénard da Costa, já glosada por outros, “Muito obrigado ao Senhor Presidente da República por me ter convidado e a V. Exas. por me terem escutado”.

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