500 anos da Língua Portuguesa no Brasil

Evanildo BecharaEvanildo Bechara (primeira parte) – Bom dia. Não poderia começar as minhas considerações de hoje sem, em primeiro lugar, um agradecimento muito especial à nossa presidente, representante do magnífico reitor, professora Ana Maria Fernandes, aos nossos queridos embaixadores pela presença e ao trabalho do deputado Aldo Rebelo, não somente em prol deste encontro, mas também do destino cultural da língua portuguesa.

Quero, igualmente, dizer que faço minhas as considerações desenvolvidas pelo nosso querido embaixador de Portugal e também pelo embaixador da França. E, como o meu tema — 500 anos de Língua Portuguesa no Brasil — já é um tema repartido por todos os colegas que me precederam nas sessões de ontem e também pelos colegas que vão se manifestar na sessão de hoje à tarde, eu gostaria de me fixar em três aspectos que considero fundamentais da presença do português em nosso país.

O primeiro aspecto é a língua portuguesa no Brasil como um laboratório lingüístico, isto é, como um documentário das teorias lingüísticas desenvolvidas tanto no século passado quanto, principalmente, no início deste século. Em segundo lugar, a história propriamente do português no Brasil. E, em terceiro lugar, o futuro cultural da língua portuguesa no Brasil. Quanto ao aspecto de laboratório lingüístico, a língua portuguesa no Brasil trazida pelos portugueses, nossos descobridores e colonizadores do século XVI, é um bom exemplo de uma língua transplantada.

A geografia lingüística desenvolvida no início deste século por grandes estudiosos suíços, franceses, alemães, italianos, teve uma derivação teórica como a teoria areal de Matteo Bartoli, que mostrou que uma língua transplantada quer dizer uma língua saída do seu seio, da sua sede para outra região, é uma língua que guarda os efeitos lingüísticos existentes nos fenômenos naquele momento.

Nesse sentido, a língua portuguesa, não somente para a história da língua portuguesa de Portugal, mas para a língua portuguesa do Brasil e de toda a România, apresenta um português que ainda não havia sofrido a influência da relatinização da ação do português com o humanismo e o Renascimento. A língua portuguesa trazida para o Brasil se situa cronologicamente naquilo a que chamo de fase arcaica média, isto é, a fase que precede imediatamente o português clássico, iniciado por Sá de Miranda, Antônio Ferreira e, primordialmente, por Luís de Camões.

De modo que, tanto na carta de Pero Vaz de Caminha, como, por exemplo, no livro literário, que são as histórias de Antônio Gonçalves Trancoso, de grande circulação na colônia americana, hoje país independente chamado Brasil, esses dois documentos literários refletem bem a natureza lingüística do português que veio para o Brasil. E isso se torna importante para a história do português em Portugal porque, a partir do século XVI, a língua portuguesa na metrópole européia vai sofrer uma série de influências principalmente influências fonéticas, com um fortalecimento da sílaba tônica que vão provocar a queda das vogais átonas, quer pré-tônicas, quer pós-tônicas, o que deu, com o continuar do tempo, a impressão de que o falar português é mais rápido do que o falar brasileiro.

Mas Camões revela bem que tinha a pronúncia daquele português a que o Eça chamou “português com açúcar”, porque na métrica de “Os Lusíadas”, ou da sua obra lírica, Camões leu os seus versos como qualquer brasileiro dos nossos dias. Isso significa que o português do Brasil não participou dos fenômenos que o português de Portugal conheceu, como, por exemplo, o que eu acabei de referir — a queda das pré-tônicas — e, no século XVII, a passagem do “e” junto de palatal a um “ã”, assim não passou para o português, por exemplo, uma pronúncia como “baijo” , como “expailho”. De modo que o português do Brasil desempenha para os estudiosos do português de Portugal um documentário extraordinário como fonte de laboratório de pesquisa lingüística.

Por outro lado, o português que veio para o Brasil apresenta traços de arcaicidade característicos das línguas periféricas, como demonstrou Matteo Bartoli na sua teoria areal. Neste ponto, o português distribui, com o espanhol, de um lado, e com o romeno, no lado oposto da romanidade, esse papel de línguas periféricas. E as línguas periféricas são mais arcaizantes do que as línguas centrais, como é o caso do francês e do italiano.

Num estudo do vocabulário românico feito por vários pesquisadores, principalmente por um lingüista alemão, vamos verificar que o vocabulário do português, do espanhol e do romeno são testemunhos de um vocabulário latino mais antigo do que o vocabulário que apresentam o francês e o italiano. Um exemplo. No vocabulário latino, a palavra mais antiga para dizer bonito era exatamente formosus ou formoçus. Essa palavra persiste no romeno, persiste no espanhol (hermozo, ) persiste no português (formoso), no português medieval e português clássico (fermoso e fremozo), enquanto o francês e o italiano acompanham uma novidade do vocabulário latino, que é a palavra hellus. De modo que nós temos vários exemplos que mostram como uma língua transplantada, e aqui especialmente o português, é um farto documentário para pesquisas no laboratório lingüístico da romanidade.

O português chegado ao Brasil em 1500, como eu disse, não apresenta aqueles traços da relatinização do português, traços que vieram com o Renascimento e o humanismo. Aqui, o português, inicialmente, teve contato com as línguas indígenas e, posteriormente, com as línguas africanas, distribuídas diferentemente pelo Norte e pelo Sul do país. E o resultado é que desse convívio naturalmente vieram as grandes contribuições que praticamente se limitaram ao aspecto léxico. Durante muito tempo, correntes de estudiosos que defendiam tese de uma língua brasileira procuraram privilegiar a influência de línguas indígenas e de línguas africanas no Brasil.

Atribuíam, por exemplo, a essas influências a colocação de pronomes, o ritmo pausado, quando na realidade esses fenômenos são fenômenos do português pré-clássico. Até o século XVI predominava na língua portuguesa escrita a próclise, que ficou no Brasil. Depois, com o fortalecimento da sílaba tônica, o português passou a optar pela ênclise, exatamente porque a átona, sendo muito final, sendo muito átona, o acento frásico teve de se apoiar na sílaba tônica da palavra, e as palavras átonas passaram a enclíticas.

Estudos já feitos no Brasil e Portugal mostram que a tendência do pronome átono no português do século XVI em Portugal era a freqüência da colocação para a crítica, colocação essa que ficou no português do Brasil e que ficou também no português coloquial das modalidades africanas, do português de África. Portanto, a língua portuguesa é um excelente documentário para estudos de laboratório lingüísticos, para estudo de teorias lingüísticas desenvolvidas, tanto no campo lexical como no campo morfossintático, como no campo da geografia lingüística, da dialetologia.

Realmente, o português só começa a ter uma desenvoltura entre o povo a partir do século XVIII, e essa cronologia é muito importante, porque é a partir desse que se desenvolve em Portugal, graças ao trabalho dos acadêmicos da Real Academia das Ciências de Lisboa, uma série de estudos, principalmente de ortógrafos como Madureira Feijó e de tantos outros estudiosos, que vão desembocar no aperfeiçoamento da língua portuguesa até então sob o grande domínio do espanhol, da casa dos Filipes.

Depois da reconquista da liberdade de Portugal em 1640, os intelectuais portugueses se voltam para o aperfeiçoamento da língua, para a renovação da língua, e isso fez com que se desenvolvesse um grande trabalho de gramáticos que foram responsáveis pela regularização ideal do português padrão, do português escrito, do português literário.

Esse trabalho de renovação vai trazer uma preocupação que hoje é nossa, preocupação do aperfeiçoamento e da difusão da língua portuguesa. Esse movimento culmina com o trabalho de um lexicógrafo brasileiro que estudou em Coimbra, o Antônio de Morais Silva, que escreveu a primeira edição, diz ele muito modestamente, um resumo do vocabulário português latino do Gliteau. Na realidade, mesmo na edição do final do século XVIII, é um dicionário que já revela uma disposição lexicográfica extraordinária, disposição que vai se consubstanciar na segunda edição do seu Dicionário da Língua Portuguesa, de 1803.

Esse dicionário — não se pode ler os autores dos séculos XVI, XVII e XVIII sem constantemente consultar a esse grande dicionário clássico —, modificado por colaboradores ilustres em edições sucessivas, acabou sendo deformado na última edição. É o nosso grande repositário lexical, o chamado Dicionário de Morais, em dez volumes, com a colaboração de excelentes professores e pesquisadores portugueses como José Pedro Machado, Vasco Botelho do Amaral e tantos outros. Mas é um dicionário que elimina do leitor as informações do português clássico, daquele português relatinizado que se desenvolveu na literatura portuguesa da segunda metade do século XVI até o século XVIII.

Uma vez eu estava trabalhando na Alemanha e o professor Harry Mayer me pediu uma resenha de um livro de um discípulo dele que tinha escrito um trabalho sobre advérbios em português. Ao fazer a resenha, eu chamei a atenção para esse aspecto. Por quê? Na obra de quase 300 páginas sobre os advérbios em português, o autor se queixa de que o Morais não destacava essas particularidades a que ele se referia no trabalho. Mostrei, então, que essas particularidades estavam no verdadeiro Morais, no Morais em dois volumes, informações que foram subtraídas no Morais em dez volumes, porque naturalmente a preocupação dos seus redatores era apresentar um vocabulário para um consulente moderno e não para um consulente de obras clássicas.

De modo que não se pode ler a literatura clássica portuguesa e, automaticamente, a literatura que se desenvolveu no Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII, sem compulsar constantemente esse monumento da lexicografia portuguesa que é o dicionário de Antônio de Morais Silva. Fluminense de nascimento, foi para Portugal estudar em Coimbra e, lá, os cacoetes ou as características da pronúncia brasileira chamaram a atenção. Criticado por isso, ele tomou como meta fundamental estudar o português, e o fez com um trabalho extraordinário. Escreveu não somente esse dicionário, que saiu no fim do século XVIII — a segunda edição é de 1803 —, mas também uma gramática baseada naquelas concepções da gramática filosófica de que a gramática de Soares Barbosa é realmente grande modelo.

Tendo a expansão do português sido feita com maior desenvolvimento no século VIII, é claro que a língua portuguesa escrita no Brasil tinha de se aproximar do modelo clássico português. E esse modelo clássico português foi a base da literatura portuguesa, da literatura brasileira no século XIX, com José de Alencar, com João Francisco Lisboa, com Gonçalves Dias e com Machado de Assis. Depois, essa preocupação acabou desembocando nos fundadores da Academia Brasileira de Letras, hoje aqui representada pelo seu presidente — porque um ex-presidente, quando bom, será sempre um bom presidente — o professor Arnaldo Niskier. Então, o português que se desenvolveu no Brasil foi um português à sombra do português padrão, do português culto, do português literário.

Os nossos grandes escritores estavam tão ligados aos escritores portugueses que não somente admiravam o português culto, do ponto de vista puramente lingüístico, mas até do ponto de vista ortográfico, que não chega a ser um problema lingüístico. A ortografia é puramente periférica, a ortografia não é a língua. Ela representa a feição escrita da parte fônica da língua. Por isso que uma ortografia pode se mudar. Nós podemos ter sistemas ortográficos diferentes. Mas isso não implica mudança na ordem lingüística. José de Alencar, referia-me eu, erradamente apontado como o primeiro defensor da modalidade brasileira ou de uma língua brasileira, José de Alencar nos pós-escritos dos seus romances acentua claramente que a grande tarefa do escritor é conservar o padrão tradicional português, enriquecendo-o, naturalmente, com as novidades da tradição, de todo o esforço cultural dos brasileiros.

A Academia Brasileira de Letras, através dos tempos, não institucionalmente escrevendo gramáticas e dicionários, como fizeram com muito louvor a Academia Francesa, a Academia della Crusca, a Real Academia Espanhola, pelo trabalho, pelo esforço, pela presença dos seus grandes escritores e representantes, acabou sendo o baluarte desse português padrão.

A lingüística moderna tem chamado muito a atenção para o problema do conceito e de correção lingüística, preocupação do professor na sala de aula, do escritor, do jornalista, enfim, de todos que trabalham com material lingüístico no dia-a-dia. A lingüística teórica veio mostrar que uma língua não é, como antigamente se pensava, um corpus homogêneo e unitário. O que caracteriza uma língua é justamente o que caracteriza o homem: a diversidade, a mudança das idades, a mudança das idéias, a mudança das fontes de cultura. Correto, numa língua, é o que está tradicionalmente fixado. Ora, uma língua histórica — português, francês, espanhol, italiano etc. — se reparte em várias modalidades lingüísticas. No século XIX só se estudou uma modalidade de mudança: a modalidade cronológica. Já no século passado se tinha bem claro, daí o desenvolvimento da gramática histórica, que a língua se modifica no tempo. Mas a língua não só se modifica no tempo. Ela se modifica também no espaço, ela se modifica também nas camadas sociais e se modifica também nas representações estilísticas, nos níveis de estilo. Escrever em prosa não é o mesmo que escrever em poesia. Existe uma gramática da prosa, como existe uma gramática da poesia, como existe um vocabulário da poesia.

A poesia de Augusto dos Anjos choca seu primeiro leitor exatamente porque contém um vocabulário que não é próprio da poesia, mas, ao contrário, à primeira vista, é um vocabulário antipoético. Depois, no contorno da cosmovisão do poeta Augusto dos Anjos, vamos ver que aquelas palavras se inserem de maneira extraordinária, de maneira muito habilidosa.

Evanildo Bechara (segunda parte) – Então, está correto tudo o que é tradicional em cada variedade de língua. O nosso embaixador de Portugal chamou a atenção para o problema da necessidade da pluralidade. E a língua é plural. Nós temos a língua familiar, temos a língua dos analfabetos, temos a língua dos semi-alfabetizados, temos a língua dos alfabetizados e temos a língua daqueles que vivem para escrever e não daqueles que escrevem para viver. Isso significa que ao lado de todas essas variedades lingüísticas, existe a língua não criada pela história, porque não é tradição, mas criada pela cultura, que é a chamada língua exemplar.

Na língua exemplar não há correto nem incorreto, porque correto e incorreto depende da tradição. Por exemplo: se no português coloquial a tradição é dizer “cheguei em casa”, essa é a modalidade correta desse modo de dizer. O que não significa que a língua portuguesa do Brasil há de se fechar no “chegar em casa”, porque, ao lado de “chegar em casa”, há o “chegar à casa”. E, quando queremos transformar uma língua num só modelo lingüístico, nós não a estamos enriquecendo. Nós a estamos empobrecendo, porque o grande ideal da educação lingüística é transformar o aluno num poliglota na sua própria língua. Ele saber se expressar como o fazem as diversas camadas sociais, sabe se exprimir de diversas maneiras, de acordo com a situação lingüística, com o contexto cultural, com a pessoa a quem ele se dirige oralmente ou por escrito. Essa diversidade é a grande riqueza da língua.

Aparentemente parece ser um problema difícil para o professor de português diante de tantas possibilidades, mas essas possibilidades não representam nem anarquia, nem pobreza, nem representam uma língua cheia de regras e de exceções. Cada língua funciona uniformemente em cada meio lingüístico. Existe um português uniforme coloquial. Existe um português uniforme familiar etc. Essa uniformidade nós a conhecemos quando aprendemos uma língua estrangeira. Quando nós aprendemos uma língua estrangeira, não aprendemos o inglês ou o francês. Nós aprendemos o inglês do nosso professor. Nós aprendemos o francês da nossa professora. E tanto é assim que, quando nós arrumamos a mala e vamos aos lugares onde essas línguas se falam como línguas maternas, precisamos de um espaço maior de tempo para nos adaptar, porque nem sempre a língua do professor que nos ensinou inglês ou da professora que nos ensinou francês no Brasil são as realidades que vamos ouvir lá fora.

Eu ainda me lembro de que quando do governo espanhol ganhei uma bolsa para fazer um curso de sociologia românica na Universidade de Madrid. No primeiro dia na Espanha, eu enchi o meu peito e abri toda a minha cultura, que era pequena naquele tempo e o é hoje também, e fui à cantina e pedi um “cafe con lecche”.

E a pessoa me olhou e verificou logo que eu não era espanhol, apesar de todo o meu esforço de falar o café com “e” fechado e “lecche” e não “lechi”. Quando eu voltei, falei com o espanhol. “Olhe, o rapaz da cantina sentiu que eu não era espanhol, apesar de todo o meu esforço. Ele disse: “É porque aqui ninguém diz cafe con lecche; aqui se diz um cortal”. No outro dia eu cheguei e disse: “Um cortal.” E, aí, ele jogou o café-com-leite. Mas, no café-com-leite espanhol, geralmente eles usam mais café do que leite, e eu, como brasileiro, gosto mais meio-a-meio. O café de leite mais mineiro. Pois bem. Eu tive de tomar aquele café-com-leite mais preto do que claro, como eu gostava. Aí, falei com o meu espanhol, e disse: “Olha, eu pedi um cortal e realmente ele colocou café-com-leite, mas colocou mais café do que leite e eu quero meio a meio. Como é que se pede?” Ele disse: “É um cortal corto”.

Isso significa que cada modalidade tem a sua norma de correção, mas acima dessas normas de correção existe uma norma exemplar, a norma da cultura, exatamente o que ocorre com a moda ou com a vestimenta. Quando recebemos um convite para uma festa, nós vemos: “traje esporte, traje esporte fino, traje passeio completo”. E cabe à minha cultura social descodificar o que diz o convite, para que na festa eu não esteja mais bem vestido ou menos bem vestido, porque eu estaria quebrando a norma da correção do vestuário para o tipo daquela festa. E, no Brasil, principalmente as mulheres têm uma grande falta de sorte, porque as cinco capitais que ditam a moda no mundo têm estações contrárias às nossas. Quando sai a moda de inverno lá e a brasileira adota, aqui nós estamos em pleno verão. Então, eu vejo, por exemplo, atravessando a avenida Rio Branco, com o termômetro marcando 40 graus, a mocinha com uma bota acima dos joelhos suando em bicas, mas está na moda. Aquilo está errado ou está certo? Não é assim. Existe uma moda de vestir. As mocinhas, por exemplo, sabem até, de acordo com o horário do dia e da noite, qual o volume da bolsa que vão usar. Segundo os técnicos, a bolsa de manhã começa muito grande, uma bolsa esporte, e vai diminuindo até chegar à bolsinha pequeneninha da festa de noite. Às vezes a pessoa diz assim: “Bem, essa bolsa não dá nem para eu colocar a minha carteira de dinheiro!” Pode ser que não esteja prática, mas é a moda. É o que acontece com a língua padrão, com a língua exemplar. Na língua exemplar não há certo, não há errado. Na língua exemplar, o que existe é a exemplaridade. A exemplaridade ditada pela cultura.

E aí nós chegamos ao terceiro aspecto das minhas considerações, que é um problema cultural da língua portuguesa. Geralmente se diz que a língua portuguesa está em crise. Essa visão de que a língua portuguesa está em crise é do século passado, época em que a língua era vista como uma realidade natural. O século XIX foi o século das ciência naturais. Então, a língua era comparada a um organismo que nascia, crescia, se desenvolvia e morria. Mas a língua não é isso. A lingüística procurou mostrar — e o fez muito bem — que a língua é um fenômeno sociocultural. E, como fenômeno sociocultural, a língua acompanha o destino do povo que a fala.

O nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, que escreveu em 1536 a primeira gramática, já tinha intuído isso , tanto que dizia: “A língua é o que os seus falantes fazem dela”. Não é a língua portuguesa que está em crise. O que está em crise é a cultura de quem fala a língua. E a grande política do idioma hoje é fazer renascer as fontes de cultura com que contava a sociedade brasileira. O Brasil hoje, de modo geral, vive inserido na linguagem coloquial.

A televisão, o jornal, a própria literatura, com honrosas exceções, têm trabalhado no sentido de aproximar a língua da realidade oral. Mas essa realidade oral é fugidia. Por isso não se pode escrever uma gramática do português falado no Brasil. Mas podemos escrever, como fez o nosso Amadeu Amaral em 1921, uma gramática do dialeto caipira, porque eu só posso fazer a descrição de um corpus homogêneo e unitário. Eu não posso fazer a descrição da língua em movimento. Por isso é que Saussure dizia que não poderia haver uma gramática histórica. Não porque Saussure fosse contra o estudo da diacronia.

É porque na linguagem técnica de Saussure gramática significava descrição. E a descrição só pode ser feita de um corpus homogêneo e unitário. Se eu quero o retrato de uma pessoa, tenho de escolher essa pessoa aos cinco anos, aos dez, aos quinze, aos vinte etc., mas não posso ter o retrato dessa pessoa comparando, reunindo numa só fotografia, essa pessoa em várias datas, em vários momentos do seu devenir social. De modo que não pode haver uma gramática do português falado no Brasil. Pode haver, sim, como fez o Amadeu Amaral, em 1921, ou como fez o professor Antenor Nascentes, em 1822, como seu livro Linguajar Carioca. Pode haver uma gramática falada em São Paulo, uma gramática falada em Brasília, uma gramática falado em Pernambuco, uma gramática falada no Rio Grande do Sul, porque eu só posso fazer uma descrição de um corpus homogêneo e unitário.

O de que nós precisamos para a permanência da língua portuguesa é aumentar as fontes de cultura deste país, que estão muito diminutas, na realidade. A escola, que é o grande baluarte — e o baluarte inicial da cultura depois da família —, a escola está atravessando uma fase muito crítica, muito difícil. E é lamentável que um estudioso da educação assinale que a educação no Brasil já foi muito boa. A escola primária no Brasil já foi uma escola a que podíamos mandar tranqüilamente os nossos filhos, porque nós tínhamos estudado nessa escola e a conhecíamos. Hoje, a escola não exerce esse papel, não porque não esteja habilitada para isso, mas está desamparada pelo Estado e pela sociedade. Nós fomos de uma geração que tínhamos, aos domingos, os concertos da juventude a que nós assistíamos gratuitamente. Eram duas ou três horas de música para educar o nosso sentimento estético-musical.

Pertencíamos a uma escola em que o Ministério da Educação dizia assim: “Um professor de primeiro ano ginasial não pode ganhar menos, vamos imaginar, de R$15, 00 por aula”. Então, as escolas mandavam para o Ministério da Educação as suas planilhas com as anuidades. E as escolas mostravam que só podiam pagar ao professor R$9, 00 por aula. E o que fazia o Ministério da Educação? Suplementava o salário dos professores. Durante muitos anos, eu que trabalhei em colégio particular, todos os meses recebia o salário da escola e a suplementação do Ministério da Educação.

Era um Ministério da Educação que tinha o Instituto Nacional do Livro, que publicava livros de alto coturno, que não interessavam comercialmente às grandes editoras. E ele então publicava enciclopédias, dicionários, livros traduzidos de grande porte. Era um Ministério da Educação que tinha na Cades — Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário — uma revista chamada Revista do Professor, distribuída gratuitamente a todo o professor que fosse à Cades e registrasse seu interesse pela revista. É a esse tipo de educação que temos de almejar hoje. E, à medida que a cultura se desenvolve, a língua se desenvolve, porque a língua traduz a cultura do homem. E essas fontes de cultura têm de ser desenvolvidas. A língua portuguesa é uma língua extraordinariamente rica, não fica a dever, em matéria lingüística, a nenhuma de suas irmãs românicas e das suas primas germânicas. É uma língua realmente dúctil, capaz de traduzir os pensamentos tanto no campo da filosofia, como no campo da lírica, como no campo da ciência, da tecnologia etc. É preciso que o Estado e a sociedade, porque só nós podemos fazer isso, se conscientizem dessa necessidade, valorizem o magistério, dêem ao professor condições para desenvolver seu trabalho condignamente. Só assim é que nós, brasileiros, poderemos cumprir a grande missão a que se referiu o nosso embaixador, de uma língua românica capaz de traduzir os nossos sentimentos, as nossas emoções e os nossos ideais. Muito obrigado.

Evanildo Bechara (terceira parte) –

Da latinidade à lusofonia

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Um dos caminhos menos formais de se entrar na história da língua portuguesa como veículo da lusofonia, sem empenhar o rigor do método histórico e lingüístico-filológico da disciplina científica, é penetrar na mensagem extraordinariamente feliz contida no soneto de Olavo Bilac em honra e ufania do nosso idioma:

Língua portuguesa

(Olavo Bilac)

Última flor do lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascavalhos vela…

Amo-te, assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela,

E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

(Poesias, 286)

Flor do Lácio

Cabe primeira referência à “Flor do Lácio”, mediante a qual nosso poeta alude à origem latina do português. O Lácio era uma pequena e desvalida região às margens do rio Tibre, povoada por humildes pastores que lutavam para vencer as dificuldades oferecidas por uma terra pantanosa e insalubre. Esta condição de comunidade rural vai deixar marcas profundas no léxico do latim, como veremos mais adiante.

Nessa época a Península Itálica agasalhava povos das mais variadas origens, indo-européias, como o osco e o umbro, e não indo-européias, como os etruscos. O latim era um modesto dialeto de pastores que fundaram Roma e que viviam numa pequena região do Lácio, às margens do rio Tibre, cercado pelos dialetos itálicos e pelo etrusco. Estes pastores tiveram de lutar para vencer dificuldades advindas de uma terra insalubre e pantanosa e, a pouco e pouco, foram dominando as comunidades vizinhas e se preparando para o grande destino que desempenharia no futuro do mundo ocidental. Mas antes de chegar a este apanágio, veículo dos encantadores discursos de Cícero, da heroicidade descrita por Virgílio, dos tons plangentes de um Horácio ou das juras amorosas de um Catulo, o latim era um modesto veículo do conteúdo de pensamento de humildes pastores, condição refletida no seu vocabulário ligado à terra e a fertilidade do solo.

Marouzeau, latinista francês dos melhores, nos apresenta vários exemplos: arbor felix (‘árvore feliz’) é aquela que produz frutos; a honestidade do homem se chama homo frugi (‘de boa produção’) passando ao significado moral de probidade; ou então é comparado ao animal de bom preço que se destaca do rebanho: homo egregius; a decadência do homem é comparada ao fruto que cai: homo caducus (de cadere ‘cair’): ao ato de enganar-se dizia-se delirare, que significava originalmente sair do rego, do sulco que em latim se chamava lira (delirare, que caiu fora da lira); ao que se debate pelo direito ao mesmo canal de irrigação é o rivalis (= port. rival, derivado do latim rivus, ‘rio’). Até palavras que servem à prática da vida literária têm origem rural; é o caso, por exemplo, de escrever, latim scribere, que significa ‘gravar’, ‘fazer uma incisão’; o ato de falar, o discurso, se dizia sermo, de serere ‘entrançar’; ler se dizia em latim legere, que significava ‘colher’.

Mas às vezes a explicação exige análise mais profunda. É o caso de se dar como exemplo de palavra da língua comum de origem da atividade rural o termo pecus ‘gado’ que dá o derivado pecunia com o significado de ‘dinheiro’. É um dos exemplos de Marouzeau, que se vê repetido noutras ocasiões. Ora, Emilio Benveniste, um dos maiores lingüistas deste século, mostrou à sociedade que pecus significou originariamente ‘o conjunto da posse móvel privada, tanto homens quanto animais’, ‘riqueza móvel’, e que, só por especialização de significado, pecus passou a designar o ‘gado’. Todos os autores da latinidade antiga e clássica não autorizam o estabelecimento de um elo entre pecunia e pecu ‘rebanho, gado’; pecunia significa sempre ‘fortuna, dinheiro’, numa prova evidente de que o primitivo pecu significa ‘posse móvel’. O mesmo se há de dizer de peculium ‘posse ou economia do escravo’, evidenciando que o significado do primitivo pecu não se refere especialmente a ‘gado’. É, portanto, uma lição que deve ser alterada nos manuais de semântica histórica.

Última flor do Lácio

Se já estamos em condições de entender por que Bilac chamou o português “flor do Lácio”, ainda não conseguimos entender a motivação que levou o poeta a classificá-lo “última” flor do Lácio. Sem sombra de dúvida, não havia no adjetivo a alusão à condição qualitativa a que no grupo das línguas românicas é das menos estudadas. Esta solução não é de todo impossível, se nos reportamos a que o poeta, em versos abaixo, não deixa de salientar ser a nossa língua “desconhecida e obscura” ou, mais adiante, “ó rude e doloroso (= que acompanha a dor) idioma”. Bilac era um apaixonado da língua portuguesa, considerada por ele talvez o traço mais fundo da identidade nacional, e, numa conferência proferida no Centro de Letras, em Curitiba, em 1916, repetia uma afirmação do nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, em 1516, que dizia que “os homens fazem a língua, e não a língua os homens”: “O povo, depositário, conservador e reformador da língua nacional, é o verdadeiro exército da sua defesa: mas a organização das forças protetoras depende de nós: artífices da palavra, devemos ser os primeiros defensores, a guarnição das fronteiras da nossa literatura, que é toda a nossa civilização” (Últimas Conferências e Discursos, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1927, pág. 208).

Outra solução, a nosso ver plausível, é a que se pode atribuir ao adjetivo “última” o significado locativo: situada a antiga província Lusitânia na parte mais ocidental não só da Península Ibérica, mas também do orbe romano ocidental, era natural que lá tivessem chegado por último os generais, os soldados, os colonos, os comerciantes e toda a sorte de integrantes da sociedade romana, para lançar as raízes de sua civilização.

Se esta foi a verdadeira motivação pretendida pelo poeta, não lhe dá razão a história da expansão romana, e Bilac, a confirmar a hipótese, imaginou a expansão atravessando o rio Pó ou Ádige e caminhando em direção do Norte, penetrando na atual Suíça pelos Alpes, chegando ao Sul da França, atravessando os Pireneus e, internando-se pela atual Espanha, rumou em direção à região mais ocidental da península para acabar no atual Portugal.

Este trajeto jamais estaria na estratégia de um general romano, já que por aí encontraria dois inimigos então quase invencíveis: o terreno extremamente montanhoso dos Alpes que prejudicaria a caminhada dos soldados e dos artefatos de guerra provenientes de Roma. O exército romano só iria beneficiar-se desses recursos depois do contato com os gauleses, hábeis na engenharia de estradas e de carros. Não é sem razão que o léxico do latim acusa numerosos empréstimos aos gauleses nessa área de atividade: carrus, benna carpentum, petorritum, plexenum, todos denominações de diversos tipos de viaturas, além de cant(h)us “roda”.

O outro inimigo, que nos tempos modernos, em outros sítios derrotou o exército de Napoleão e parte do de Hitler, seria o frio. No Norte da Península Apenina estão os Alpes italianos e suíços que descoroçoariam qualquer investida militar. Destarte, temos de voltar à verdadeira orientação da expansão romana até chegar à Península Ibérica.

Apesar das circunstancias inóspitas do terreno às margens do Tibre, o Lácio gozava de feliz situação geográfica, pois, instalada numa região de intensas rotas de tráfego comercial, permitia a comunicação entre a Itália do Norte e a do Sul. Depois, houve um período de submissão aos etruscos — submissão que, do ponto de vista de progresso material lhes foi proveitosa, uma vez que a dinastia dos Tarquíneos deu novo alento à região e fundou a cidade de Roma, nome que, ao que parece, é de origem etrusca, e, além de exercer sobre os latinos influência na religião e no campo das artes divinatórias, foi por intermédio dos etruscos que o alfabeto latino, de origem mais próxima grega, chegou aos romanos.

Pela razão antes exposta, a expansão territorial dos romanos caminhou rumo ao Sul, depois de lutar e subjugar as comunidades mais próximas a Roma. Estas vitórias sobre as populações às margens do Mediterrâneo levaram os romanos a defrontar-se com os cartagineses, habitantes de Cartago, região ao Norte da África, e senhores quase absolutos do comércio marítimo mediterrâneo. Foram duras lutas, ora vencidas, ora perdidas, que acabaram por dar a vitória final aos generais de Roma, durante a terceira guerra púnica, no século II a.C.; estava assim aberto o caminho para a conquista do Sul da Península lbérica, pela atual Espanha. O Mediterrâneo bem mereceu dos romanos o título de mare nostrum.

Assim, o latim penetrou como língua do conquistador na Hispania, no ano 197 a.C., e daí em diante outras regiões passaram a engrossar o império romano, a tal ponto que a História não conheceu outro povo de tão larga e profunda dominação: Illyricum, em 167; África e Achaia (nome da Grécia), em 146; Ásia (isto é, Ásia Menor), em 129; Gallia Narbonensis (isto é, a antiga Provença, nome originado de província, por ser a província por excelência), em 118; Gallia Cisalpina, em 81; Gallia Transalpina, em 51, depois da campanha de Júlio César, a respeito da qual escreveu o De bello Gallico; Aegyptus, em 30; Rhaetia e Noricum, em 15; Pannonia, em 10 d.C.; Cappadocia, em 17; Britannia, em 43 e finalmente a Dacia (região onde hoje se situa a Romênia), em 107.

Por este quadro, vê-se que a atual língua portuguesa, de procedência originariamente galega, não poderia ser, com toda certeza, a “última” flor do Lácio, embora a romanização da Península lbérica tivesse levado dois séculos para completar-se definitivamente.

Cabe lembrar, para concluir este comentário, que algumas províncias conquistadas, especialmente as mais longínquas e as de menor interesse comercial ou estratégico, nunca foram totalmente romanizadas, enquanto outras, como a Britannia (= Inglaterra), conheceram um domínio muito curto, mas de penetrante influência cultural. Assim, chegamos a poder afirmar que a língua portuguesa foi das primeiras a se formar no quadro das línguas românicas; como afirmou o notável romanista Gustavo Gröber, o início de cada língua românica teve lugar no momento em que o latim foi transplantado para as regiões conquistadas e aí entrou em contacto com o substrato cultural de diferentes povos e, ora mais rígidos, ora mais lassos os cordões ligados ao poder central de Roma, os conquistadores se foram diferençando do primitivo latim.

Esta presença muito cedo do latim na Península Ibérica é responsável por certas características lingüísticas arcaicas do chamado latim hispânico, de que resultaram o galego-português e o espanhol, quer na fonologia, quer na gramática (morfologia e sintaxe), quer no léxico. Assim nesse latim hispânico acolhem os seguintes fatos, desconhecidos de outras línguas românicas:

a) a sobrevivência do pronome relativo cujus, genitivo de qui, quae, quod: português cujo, espanhol cuyo;

b) a sobrevivência da série tríplice dos pronomes demonstrativos iste, ipse, ille (na forma reforçada (accu+ille): port. este, esse, aquele; espanhol este, esse, aquel);

c) a conservação do mais-que-perfeito em -ra (amara) e do imperfeito do subjuntivo em -sse (amasse);

d) a evolução fonológica de mb passando a m; espanhol: palumba dando paloma.

No léxico, a exemplificação ainda é mais representativa, porque o português e o espanhol em geral conservam a palavra mais antiga, enquanto o italiano e o francês adotam as palavras mais recentes no latim.

Esta diferenciação toca num ponto de lingüística geral de que teremos ocasião de falar, quando comentarmos distinções entre o português de Portugal e o português do Brasil: as regiões geograficamente periféricas ou marginais e as regiões centrais em relação ao centro cultural. Portugal e Espanha — bem como a Romênia — pertencem à áreas periféricas, enquanto Itália e França são áreas centrais relativamente a Roma; as primeiras são áreas conservadoras e as segundas inovadoras, e, em parte, isto se explica porque muitas inovações não tiveram a força de expansão para chegar ou implantar-se nas áreas mais afastadas ou periféricas. Vejam-se os seguintes exemplos, sabendo-se que as áreas conservadoras usam as palavras mais antigas no latim:
Português
Espanhol
Italiano
Francês
Romeno
Latim
FORMOSUS

BELLUS

Formoso
hermoso
Bello
beau
Frumos
Latim
PLECARE

*ARRIPARE

Chegar
llegar
Arrivare
arriver
a pleca
Latim
MAGIS

PLUS

Mais
más
Più
plus
Mai
Latim
RIVUS

FLUMEN

Rio
río
Fiume
fleuve
Rîu
Inculta e bela

O adjetivo inculta referente à “flor do Lácio” prende-se à fase inicial da Filologia ou Lingüistica Românica que chamava ao latim fonte das línguas românicas, isto é, suas continuadoras ininterruptas no tempo e no espaço (português, galego, espanhol, occitânico, catalão, francês, franco-provençal, italiano, sardo, reto-românico, dalmático e romeno), latim vulgar, e o caracterizava como a modalidade popular falada pelas camadas sociais que não tinham acesso à escolaridade e, por isso mesmo, falavam muito diferentemente do latim escrito e literário, chamado latim clássico.

Daí o nosso poeta não só estigmatizá-lo como “rude”, mas ainda “desconhecida e obscura”, já nas suas relações genealógicas com a língua portuguesa.

Hoje esta concepção de latim vulgar muito se modificou, principalmente pela visão de que um língua histórica se constitui de um conglomerado de línguas dentro de si, aquilo a que os lingüistas costumam chamar um “diassistema”, isto é, um conjunto complexo e variado de tradições lingüísticas, repartidas entre variedade diatópicas (regionais ou locais, os dialetos), diastráticas (sociais ou socioletos) e diafásicas (estilísticas).

Destarte, o latim, como língua de sociedade e do império romano, apresentava-se também polifacetado, de modo que o percurso de latim a línguas românicas não se pode atribuir, exclusiva ou preponderantemente, a determinada modalidade “popular” ou a qualquer outra, pois já apareceu tese de que elas “provinham” do latim clássico. Neste processo histórico, com maior ou menor participação, esse latim fonte das línguas românicas é um depositário de isoglossas comuns oriundas de elementos populares, literários, da classe média e do latim dos cristãos, de elementos rústicos e itálicos, quer da atividade falada, quer da língua escrita.

Por isso, podemos dizer que Bilac, até certo ponto, na sua intuição de poeta (que, pelo visto, não é só um fingidor, mas um futurólogo …), se antecipou à concepção diassistêmica de lingüistas hodiernos, pois não deixou de pressentir, na pertença uniformidade do latim vulgar, a presença da multiformidade do latim tout court, do latim sem adjetivos, conjunto de isoglossas que se depreende vivo em qualquer momento histórico por que se queira estudar e descrever o latim.

Parece ser dentro desta nova visão de teoria lingüística que Bilac aproxima sem contradição! – … inculta e bela.

És, a um tempo, esplendor e sepultura

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela (= cobre com uns véu para ocultar o ouro nativo).

Antes de prosseguir na exegese do soneto, paremos para apreciar a adequação e a justeza do léxico de Bilac; ao comparar o português com o ouro in natura (“ouro nativo”), reporta-se ao vocabulário especial ou técnico da mineralogia: “ganga”, dizem os dicionaristas, é o “resíduo, em geral não aproveitável, de um jazida filoniana, o qual pode, no entanto, em certos casos, conter substâncias economicamente úteis”. Daí, nada mais normal do que se Ihe aplicar a adjetivação “impura” e a referência a “cascalhos”. A noção técnica de jazida filoliana do verbete dicionarístico está representada em “a bruta mina”, em que “bruta”, com o significado de ‘tal como é encontrada na natureza’, retoma a noção de “nativo” em “ouro nativo”, já que “nativo” significa ‘o que é natural’.

Cabe aqui uma curiosidade para os que conhecem pouco a atividade literária e cultural de Olavo Bilac: o exímio poeta e excelente prosador preparou um dicionário analógico que, parece, chegou a ser entregue ao livreiro Francisco Alves, da qual obra e do seu paradeiro, infelizmente, não se tem hoje notícia. Ainda a relação das obras do autor que aparece na edição das Últimas Conferências e Discursos (1927) arrola o Dicionário Analógico, com a informação: “no prelo”.

O poeta, no segundo quarteto do soneto, já vai falar’ da língua portuguesa literariamente constituída, deixando um vazio, entre o primeiro quarteto (a latinidade do português) e o segundo, vazio que procuraremos preencher nas linhas que se seguem.

Estabelecida a origem latina do idioma, cumpre lembrar que, chegados os romanos à Península Ibérica no século III a.C., só no I a.C. estava a região romanizada. Ao lá chegarem, encontraram os conquistadores povos que já habitavam a península, povos de que não temos seguras notícias nem vestígios que não ofereçam muitas dúvidas.

Evanildo Bechara (quarta parte) – Fala-se numa base indígena de povos da cultura chamada capsense, bem como se aponta como possível um substrato mediterrâneo. Menéndez Pidal, lingüista espanhol do mais alto valor, acreditava na existência de um povo de raiz lígure ou que, para Serafim da Silva Neto, o mais competente filólogo brasileiro da história do português, conviria chamar “ambroilírio”, que habitava o Norte de Portugal, Galiza, Astúrias e a parte ocidental de León, do qual temos alguns vestígios concretos, entre os quais lembraremos os sufixos -asco, -antia/-entia, -ace, -ice, -oce.

Ainda antes dos romanos, no século Vlll a.C., penetram nessa região os celtas, povo de origem indo-européia. De nível cultural superior aos primitivos habitantes, devem ter-lhes exercido salutar influência, sem deixar de haver contribuições recíprocas, como sempre ocorre nesses convívios de culturas. As notícias desses povos que chegaram até nós procedem de historiados greco-romanos, que descrevem esses habitantes como homens que viviam em constantes lutas tribais, dormiam no chão, e se alimentavam principalmente de bolotas ou frutos do carvalho e carne de ovelha preparada com manteiga, enquanto as mulheres se entregavam aos afazeres domésticos e ao trabalho agrícola. É nesses historiadores que encontramos a notícia de um produto usado no cozimento da comida até então desconhecido por eles: a manteiga. Realmente só no português e no espanhol (mantequilla) existe a palavra manteiga; nas demais línguas românicas, exceto o romeno, prevalecem os remanescentes do grego bútyrum, butúrum, butírum: italiano burro, francês beurre, occitânico burre, reto-românico bütír.

Já vimos que a romanização militar, política e administrativa trouxe à religião e a seus habitantes muitos benefícios, por estarem os romanos num grau de civilização bem superior, o que, como é óbvio, facilitou também a romanização lingüística. Saídos de seus sítios montanhosos, logo se misturaram ao sistema de vida dos romanos, assimilando não só novos padrões de vida, mas conhecendo novas técnicas de agricultura, de engenharia e de indústria; entre outros benefícios, as rivalidades tribais foram a pouco e pouco desaparecendo. Jovens incorporavam-se ao exército e, com as legiões, saíam para conhecer novos aspectos da sociedade romana em outras colônias conquistadas, contato facilitado pela extraordinária rede de estradas abertas pelos romanos.

Fator assaz importante de congregação foi o Cristianismo, cuja época de introdução na península não está de todo fixada, mas sabemos que já na metade do século III a Hispânia já se achava fortemente evangelizada. Esta influência se reflete na visão moral do mundo, na severidade dos costumes e até no respeito às normas estabelecidas, como foi o caso de adotarem a determinação da Igreja de fugirem dos cultos e divindades pagãs, substituindo-as pelos preceitos cristãos. Explica-se assim o fato de o galego-português ser o único a adotar as denominações cristãs dos dias de semana na base de féria (segunda-feira, terça-feira, etc.), em vez das denominações pagãs lunes, lundi, lunedi, etc., como permaneceu nas demais línguas românicas, inclusive no espanhol.

No século V os germânicos penetram na península, sendo a região da Gallaecia invadida pelos suevos, depois derrotados pelos visigodos, povos que já anteriormente tinham tido contato com os romanos, razão por que a língua da região não sofreu grande influência da língua dos conquistadores, exceção feita ao léxico, parte do qual chegou já introduzida no latim.

Como a língua acompanha os acontecimentos histórico do povo que a fala, o idioma da região vai experimentar os passos políticos que Galiza conheceu nos fins do século XI: em 1090 o rei Afonso VI concede a Raimundo de Borgonha, que chegara à península com os cavaleiros católicos, militares procedentes do centro da atual França, com a tarefa de reforçar a reconquista do território invadido pelos árabes, a mão de sua filha primogênita dona Urraca e, como presente, concede-lhe o título de conde e oferece-lhe o governo da atual Galiza, incluídos os territórios entre o Minho e o Mondego, e logo depois, em 1093, não podendo impor a ordem em tão vasto território, é constituído o Condado Portucalense no espaço geográfico que se situa entre os rios Minho e Douro, que foi oferecido a seu primo Henrique de Borgonha, casado com dona Teresa, filha natural do rei Afonso Vl.

Já em 1128 constitui-se a nação portuguesa, independente da coroa integrada por Galiza, Leão e Castela e em 1139 ou 1 140, Afonso Henriques, filho de Henrique de Borgonha e dona Teresa, se proclama rei de Portugal.

Os limites políticos da região, definidos por estes acontecimentos históricos, não correspondem, a princípio, aos limites lingüísticos, prevalecendo entre Galiza e Portugal características idiomáticas comuns. Avançando cada vez para a Sul, empenhada na reconquista das cidades tomadas pelos árabes, a corte portuguesa instala-se em Coimbra, depois em Santarém e já no tempo de Afonso Ill, aclamado rei em 1248 — reinado que durou até 1279, com excelente administração e proveito para Portugal —, Lisboa começa a figurar como capital do reino.

Este espraiar-se em direção ao Sul foi favorecendo uma paulatina desgaleguização da fala dos conquistadores, ao lado de uma mútua adaptação lingüísticas destes aos usos da extensa população moçárabe — isto é, cristãos que, não se refugiando ao Norte durante as conquistas árabes, permaneceram, entre os infiéis, praticando o seu latim hispânico romano-gótico e seus primitivos costumes e suas crenças.

Assim, não foi o falar do Norte de Portugal, trazido pelos conquistadores cristãos, que serviu de base à constituição do que hoje se chama língua histórica portuguesa, mas sim, como já defendiam os lingüistas Francisco Adolfo Coelho e José Leite de Vasconcelos, se forjou no Centro e no Sul com a província da Estremadura como limite meridional. Um dos testemunhos, entre outros, deste fato histórico na prática lingüística desta língua comum está no desaparecimento, na língua comum, do fonema nortenho /tx/ ouvido em palavras como chave, chapéu, chover, substituído por /x/; das consoantes africadas /ts/ e /dz/ ouvidas em cervo e prazer, simplificadas em /ss/ e /z/; do s implosivo ouve-se como /x/ diante de consoante surda (os cães) ou como /j/ diante de consoante sonora (os gatos), conforme hoje se profere o “chiamento” em Lisboa e no Rio de Janeiro, por exemplo; dos destinos dos ditongos nasais com a perda do n intervocálico.

Se do lado da desgaleguização do português ocorreram estes e outros fenômenos, do lado do galego outros fenômenos iriam contribuir para maior afastamento da relativa unidade originária, como, por exemplo, a dessonolizacão das consoantes (genro >xenro) não penetrou na região do Minho.

Em resumidas considerações, podemos concluir com a lição de excelentes lingüistas galegos e lusitanos que a nossa língua, no decorrer de um período cujos limites não se podem com precisão fixar, nasce do galego do sul ou da região portucalense, que se desgaleguizou na sua caminhada para o sul, ao influxo também da situação lingüística moçárabe. A unidade primitiva galego-portuguesa está presente na perspectiva dos primeiros romanistas que estudaram conjuntamente as línguas românicas ou neolatinas; é o caso de Frederico Diez, fundador da Filologia Românica em 1836, que assim se expressa, na tradução francesa de sua Gramáticas da Línguas Românicas: “le portugais et le galicien (…) sont une seule et nême langue, comme des savants indigènes eux-mêmes I’on reconnu et demostré avec des chartes rédigées dans les deux pays” (vol. 1, pág. 91).

Em 1095, Afonso VI concede autonomia à Província Portucalense e em 1139 Afonso Henriques se proclamou o primeiro rei de Portugal, como já dissemos.

O português, na sua feição originária galega, surgirá entre os sécs. IX-XII; mas seus primeiros documentos datados só aparecerão no século XIII: o Testamento de Afonso II e a Notícia de torto. Curiosamente, a denominação “língua portuguesa” para substituir os antigos títulos “romance” (“romanço”), ”linguagem”, só passa a correr durante os escritores da Casa de Avis, com Dom João I. Foi dom Dinis que oficializou o português como língua veicular dos documentos administrativos, substituindo o latim.

Entre os séculos XV e XVI Portugal ocupa lugar de relevo no ciclo das grandes navegações, e a língua, “companheira do império” se espraia pelas regiões incógnitas, indo até o fim do mundo, e, na voz do poeta, “se mais mundo houvera lá chegara” (Os Lusíadas, Vll, 14). Daí a segunda quadra de Bilac, completada pelos dois tercetos:

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Depois da expansão interna que, literária e culturalmente, exerce ação unificadora na diversidade dos falares regionais, mas que não elimina de todo essas diferenças refletidas nos dialetos, o português se arroja, na palavra de indômitos marinheiros, pelos mares nunca dantes navegados, a fim de ser o porta-voz da fé e do império. São passos dessa gigantesca expansão colonial e religiosa, cujos efeitos, além da abertura dos mares, especialmente o Atlântico e o Índico, foram, segundo uma afirmação de Humboldt, uma duplicação do globo terrestre:

1415 – expedição a Ceuta sob o comando do próprio rei;

1425-1436 – Madeira e Açores;

1444 – Cabo Verde, com início de povoamento em 1462;

1446 – Guiné;

1483-1486 – Angola (primeiros contatos) e colonização de São Tomé e Príncipe;

1498 – Vasco da Gama chega à Índia e passa por Moçambique;

1500 – Brasil;

1511 – Malaca e Malucas;

1515 — Ormuz;

1518 — Colombo;

1536 — Damão;

1547 — Macau (além das ilhas de Samatra, Java e Timor).

Tomado o século XIII como início da fase a que Leite de Vasconcelos chamou português histórico, isto é, documentado historicamente, podemos dividi-lo em períodos lingüísticos, cujas delimitações não conseguem, entre os estudiosos, concordância unânime. A dificuldade de consenso advém de vários fatores: o terem as propostas fundamento em textos escritos que, como sabemos, mascaram a realidade e as mudanças lingüísticas; o não terem os fenômenos sua data de nascimento e morte e, finalmente, constituir elemento perturbador nesta ordem de estudos a influência de fatores estético-literários que, conforme sua orientação conservadora ou progressista, atrasa ou acelera determinadas tendências lingüísticas. Foi o que aconteceu com o chamado latim literário sob a influência grega; com o português europeu sob o influxo do humanismo e com o português do Brasil sob a ação iconoclasta inicial do Modernismo de 22.

Adotamos aqui a seguinte proposta, incluindo na primeira fase a realidade galego-portuguesa :

a) português arcaico: século XIII ao final do XIV;

b) português arcaico médio: primeira metade do século XV à primeira metade do século XVI;

c) português moderno: segunda metade do século XVI ao final do XVII (podendo-se estender aos inícios do século XVIII);

d) português contemporâneo: século XVlll aos nossos dias.

Ao primeiro período pertencem, além dos textos administrativos e de leis, forais e ordenações, a poesia palaciana encerrada nos cancioneiros medievais (Ajuda, Vaticana e Biblioteca Nacional, antigo Colocci-Brancuti), as Catingas de Santa Maria, algumas vidas de santos (Barlaão e Josafá, Santo Aleixo, etc., traduções, em geral, de textos latinos, que chegaram até nós, quase sempre, em cópias mais modernas), o Livro das Aves, Fabulário de Esopo, a Demanda do Santo Graal, Corte lmperial, entre muitas.

Ao segundo período pertencem o Livro da Montaria, de Dom João I, Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de bem Cavalgas toda sela de dom Duarte, as Crônicas de Fernão Lopes (Dom João I, dom Pedro, Dom Fernando), de Zurara (Crônica dos Feitos de Guiné, Crônica da tomada de Ceuta), a Crônica dos Frades Menores, as crônicas de Rui de Pina, muitas outras obras.

Ao terceiro período pertencem as obras históricas de João de Barros, Diogo de Couto, Fernão Lopes de Castanheda, Damião de Góis, Gaspar Correia, o Palmeirius de Inglaterra de Francisco de Morais, a obra literária de Sá de Miranda e o teatro clássico de Antônio Ferreira, a Etiópia Oriental de frei João dos Santos, a prosa mística da Imagem da Vida Cristã de Heitor Pinto, dos Diálogos de Amado Arrais, dos Trabalhos de Jesus de Tomé de Jesus e da Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Vasque, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Pero Magalhães de Gandavo; mas, a todos excede Luís de Camões que, não sendo “propriamente o criador do português moderno (…), libertou-o de alguns arcaísmos e foi um artista consumado e sem rival em burilar a frase portuguesa, descobrindo e aproveitando todos os recursos de que dispunha o idioma para representar as idéias de modo elegante, enérgico e expressivo. Reconhecida a superioridade da linguagem camoniana, a sua influência fez-se sentir na literatura de então em diante até os nosso dias”.

Com muita razão, concede Said Ali, do ponto de vista lingüístico, um lugar à parte na literatura quinhentista, às comédias, autos e farsas do chamado teatro de medida velha que tem em Gil Vicente seu principal representante, produções de grande importância para o conhecimento da variedade coloquial e popular da época. Pertencem a este gênero especial os Autos de Antônio Prestes, de Chiado, de Jerônimo Ribeiro, a Eufrosina e Ulissipo de Jorge Ferreira de Vasconcelos, sobrelevando-se a todos eles as obras deste genial pintor da sociedade e dos costumes do século XVI em Portugal, que foi Gil Vicente.

No século XVll assistimos ao aperfeiçoamento da prosa artístico com frei Luís de Sousa, cuja linguagem representa uma fase de transição entre os dois momentos do português moderno. É o período em que ressaltam os Sermões do padre Antônio Vieira, os Apólogos Dialogais de Francisco Manuel de Melo, a prosa suave de Manuel Bernardes e os quadros bucólicos de Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo, além dos representantes da historiografia de Alcobaça.

O século XVlll não é só o século das academias literárias, mas de todo um esforço na renovação da cultura e da instrução pública, sob o influxo dos ideais do neoclassicismo francês, que culminam na reforma pombalina da Universidade, em 1772. Assiste-se a um reflorescimento da poesia com Pedro Antônio Correia Garção, Antônio Dinis da Cruz e Silva, Filinto Elísio, Tomás Antônio Gonzaga e os poetas árcades brasileiros, e Barbosa du Bocage.

Do ponto de vista lingüísticos o português contemporâneo fixado no decorrer do século XVIII chega ao século seguinte sob o influxo de novas idéias estéticas, mas sem sofrer mudanças no sistema gramatical que lhe garantam, neste sentido, nova feição e nova fase histórica.

Expansão da língua portuguesa e o Brasil

Como vimos, no primeiro terceto o poeta alude aos novos domínios a que chegará a língua portuguesa levada pelos capitães, pela marujada, pela soldadesca e, depois, pelas famílias portuguesas e religiosos que nas regiões conquistadas lançaram as raízes da fé católica e da civilização lusitana. Na África, o português comum europeu estendeu-se o idioma aos centros de civilização européia portuguesa de Angola e Moçambique, do arquipélago de Cabo Verde, e das ilhas de São Tomé e do Príncipe; na Índia, a Diu, Damão e Goa; na China, a Macau; na Malásia, a parte da ilha de Timor e, na América do Sul, ao Brasil. Hoje, as cinco repúblicas africanas adotaram o português como língua oficial, a par de seus vários dialetos nacionais, e o Brasil o tem como língua nacional.

Em Portugal, pelas regiões históricas e políticas de que já falamos, encontra-se uma grande divisão dialetal entre o Norte e o Sul, que admitem diferenças regionais menores, e uma zona de transição entre estes dois espaços lingüísticos na área do Centro, constituída pela Beira.

No Brasil a classificação dialetal que parece melhor refletir a nossa diferenciação diatópica é a proposta por Antenor Nascentes, segundo a qual o país está dividido em duas grandes áreas: a do Norte e a do Sul, cuja linha demarcatória está, a partir do litoral, entre Espírito Santo e Bahia, com prolongamento até a cidade de Mato Grosso, depois de cortar os estados de Minas Gerais e Goiás.

Para Nascentes estes espaços apresentam dois traços diferenciadores fundamentais:

a) a abertura das vogais pretônicas no Norte em palavras que não sejam diminutivos nem advérbios terminados em — mente: lèvar / levar.

b) a cadência do ritmo frasal, “cantada” no Norte, e normal ou descansada no Sul.

c) estes espaços admitem subfalares; no Norte o amazônico e o nordestino e no Sul: o baiano, o fluminense, o mineiro e o sulista.

Este ritmo vocabular e frasal ainda atual no Brasil, sem que as vogais átonas sejam absorvidas ou “engolidas” como fazem, em geral, os portugueses, é marca registrada da língua dos nossos colonizadores no século XVI. Fernão de Oliveira, autor da primeira gramática do português, dá-nos disto testemunho: “e outras nações cortam vozes apressando-se mais em se falar, mas nós falamos com grande repouso como homens assentados” (pág. 1).

Além do testemunho de Oliveira, temos os dos poetas e, entre estes, especialmente lembremos Luís de Camões; os versos de Os Lusíadas lidos pelo poeta como de dez sílabas métricas, também o são na pronúncia geral do Brasil e, não sem razão, o saudoso lingüista e filólogo patrício Sílvio Elia, o considerava o primeiro poeta brasileiro. A um português de hoje, os mesmos versos poderão parecer metricamente mal elaborados; era o que pensava Antônio Feliciano de Castilho ao ler Camões com pronúncia lusitana do século XIX.

Evanildo Bechara (quinta parte) – Esta identidade relativa entre a observação de Fernão de Oliveira sobre o ritmo cadenciado do português do século XVI e a pronúncia normal brasileira que evita a síncope das vogais e sugere ao ouvinte uma pronúncia mais lenta se explica pelo conservadorismo à língua transplantada: o português do Brasil não conheceu as mudanças que o português europeu experimentou depois do século XVI: a intensificação da sílaba tônica que favoreceu a queda de vogais átonas; a mudança de e fechado a a fechado em contacto com fonema palatal: beijo — bâijo; espelho — espâlho; bem — bãi (rimando mãe com também).

Chegando ao Brasil em 1500 com nossos descobridores, praticamente só em 1534 foi introduzida a língua portuguesa com o início efetivo da colonização, com o regime das capitanias hereditárias. Conclui-se que a língua que chegou ao Brasil pertence à fase de transição entre a arcaica e a moderna, já alicerçada literariamente.

Expansão da língua portuguesa

No Brasil dessa época encontraram os descobridores e colonizadores portugueses uma variedade de falares indígenas, no cômputo aproximado de trezentos, hoje reduzidos a cerca de 170, na opinião de um dos seus mais categorizados conhecedores, Aryon Dall’lgna Rodrigues. Grande extensão territorial da nova terra era ocupada pela família tupi-guarani, que apresentava pouca diferenciação nas línguas que a integram.

Veio depois a contribuição das línguas africanas em suas duas principais correntes para o Brasil: ao Norte, de procedência sudanesa e ao Sul, de procedência banto; temos, assim, no Norte, na Bahia, a língua nagô ou iorubá; no Sul, no Rio de Janeiro e Minas Gerais, o quimbundo.

A pouco e pouco, à medida que se ia impondo, pela cultura superior dos europeus, o desenvolvimento e progresso da colônia e do país independente, a língua portuguesa foi predominando sobre a “língua geral” de base indígena e dos falares africanos, a partir da segunda metade do século XVllI. É bem verdade que no século XVI tínhamos tido no Brasil um Bento Teixeira em Pernambuco, um frei Vicente do Salvador e um Gregório de Matos na Bahia, e um padre Antônio Vieira, todos pela ação benfazeja dos colégios religiosos.

Cremos que a consciência do português como língua nacional e língua materna, como disse bem o historiador José Honório Rodrigues citado por Sílvio Elia, está patente no trabalho do povo: “O espantoso no Brasil é que a conquista da unidade lingüística não é obra da educação, mas do esforço do povo sem nenhuma ajuda oficial”.

A lusofonia e seu futuro

Os escritores dos sécs. XIX e XX de todos os quadrantes da lusofonia, acompanhados dos intelectuais, religiosos, políticos, cientistas e do povo em geral em todos os substratos sociais, souberam garantir este patrimônio lingüístico de tanta história e de rica tradição.

Em Portugal brilham os gênios dos Herculanos, dos Castilhos, dos Garrettes, dos Camilos, dos Eças, dos Aquilinos, dos Pessoas, das Florbelas. No Brasil, as luzes dos Machados, dos Alencares, dos Azevedos, dos Ruis, dos Correias, dos Alves, dos Casimiros, dos Oliveiras, dos Bilaques, dos Andrades, dos Bandeiras, dos Veríssimos, das Clarices, das Cecílias. Em Cabo Verde, os Jorges Barbosas, os Lopes, os Fonsecas, os Mirandas, os Virgínios. Em Guiné, São Tomé, Angola e Moçambique brilham os talentos dos Soromenhos, os Ribas, os Milheiros, os Antônios de Assis, os Bessas, os Osórios, as Lílias, os Antônios, os Galvões, os Mendes, as Noêmias, as Costas Alegres, os Tenreiros, os Duartes. Na Índia Portuguesa, os Fredericos Gonçalves, os Gomes, os Barretos, os Leais, os Aires, os Costas.

Patrimônio de todos e elo fraterno da lusofonia de cerca de 200 milhões de falantes — a que, na opinião de Rodrigues Lapa, se podem juntar os galegos espalhados por todos os continentes, continuemos os votos de Antônio Ferreira, no século XVI:

Floresça, fale, cante, ouça-se e viva

A portuguesa língua, e já onde for,

Senhora vá de si, soberba e altiva!

Bibliografia para leituras posteriores

Atas do Congresso sobre a situação atual da língua portuguesa no mundo. Lisboa, ICALPE, 1985.

CUNHA, Celso. Língua, nação, alienação. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

ELIA, Sílvio. A língua portuguesa no mundo. São Paulo. Ática, 1989.

HOUAISS, Antônio. O português no Brasil. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985.

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Foto: O Membro da Academia Brasileira de Letras, Evanildo Bechara (E), acompanhado pelo Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Adriano Moreira (D), fala durante a Conferência Internacional/Audição Parlamentar, a decorrer na Sala do Senado na Assembleia da República, em Lisboa, 07 de Abril de 2008. MIGUEL A. LOPES / LUSA

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