Olaria negra de Bisalhães declarada Património Imaterial da UNESCO

O processo de confeção do barro preto de Bisalhães, no concelho de Vila Real, já está inscrito na Lista do Património Cultural Imaterial da Unesco.
A decisão foi tomada esta terça-feira, na 11ª reunião do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que está a decorrer em Adis Abeba (29 nov, 2016), capital da Etiópia.
Peça de cerâmica de argila negra da Bisalhães. 01 de dezembro de 2016. PEDRO ROSARIO / LUSA
Peça de cerâmica de argila negra da Bisalhães. 01 de dezembro de 2016. PEDRO ROSARIO / LUSA
O oleiro Manuel Martins com uma peça artesanal de cerâmica de argila negra de Bisalhães. 01 de dezembro de 2016. PEDRO ROSARIO / LUSA
O oleiro Manuel Martins com uma peça artesanal de cerâmica de argila negra de Bisalhães. 01 de dezembro de 2016. PEDRO ROSARIO / LUSA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vila Marim dos pucarinhos

Mondrões é dos mal asados

Bisalhães dos bem feitinhos”

(Quadra Popular)

 

“Se fores a Bisalhães

À terra dos paneleiros,

Dá por lá uma vista de olhos

À sombra dos Castanheiros”

(Cancioneiro de Vila Real)

Bisalhães é uma pequena aldeia serrana, situada a cerca de oito quilómetros de Vila Real, da freguesia de Mondrões, onde ainda se produz uma original e peculiar forma de trabalhar o barro, e que é conhecida em toda a parte como a “Louça de Bisalhães”, de cor antracite escura.

Quem há uns anos largos, rumava à cidade de Vila Real, depois das inúmeras e “enjoantes” curvas do Marão, passada a “Toca do Lobo”, célebre pelo seu cozido, começava a ver na beira da estrada os primeiros indícios da louça de Bisalhães, os “pucarinhos” como eram chamados. Para chegar à “Bila” faltava só passar por Parada de Cunhos, com o seu posto da brigada de trânsitos, e aí tínhamos os artesãos a vender a louça negra de uma aldeia, onde a tradição é intrínseca à terra, estendendo-se as “montras” até à entrada de Arrabães, dando um tom pitoresco e único à estrada. De geração em geração, transmitiu-se o conhecimento pelo barro, a arte de o moldar, de o cozer e dar forma e formas às louças negras, que são hoje um estandarte da localidade e do artesanato de Vila Real.

A arte de trabalhar o barro floresceu em Lordelo, estendeu-se à aldeia de Mondrões e, percorrendo colinas e vales, chegou a Bisalhães. O barro, argila de cor cinza claro, proveniente de localidades próximas como Telheira ou Parada de Cunhos, ganhou forma e beleza nas mãos dos aldeãos. Hoje em dia a matéria-prima só existe em Chaves.

Trabalhar o Barro
A transformação dos “pelões” de barro começa num alguidar, onde é colocado, para com a ajuda de um pico de madeira, se começar a moer o barro até o reduzir a pó.
Após a moagem, o pó argiloso tem de ser peneirado, para retirar todas as impurezas, variando a escolha das peneiras de acordo com os objectos a fabricar. O crivo, peneira com rede de malhas largas, aplica-se na produção de artigos de utilidade (louça churra) e a peneira com rede fina no fabrico de peças de decoração (louça fina).
Chegou então a hora de juntar água à argila e de proceder ao seu amasso perfeito, até se ligarem os dois componentes. Seguidamente guarda-se o barro em sacos de plástico, para perdurar no tempo, e ser utilizado à medida que for necessário.

O rodopiar da roda e o toque do “gogo”
Ao toque do pé do artesão a roda de madeira inicia o seu rodopiar, amassando um bocado de barro, que tem de estar humedecido de forma homogénea. O barro é colocado no centro da roda e esta continua a girar, à medida que dos dedos de mãos calejadas do oleiro, se formam as peças que o artesão quer fabricar, fazendo aparecer formas de vida de um pedaço de pó. Depois de completa a peça, ela deve secar. É aqui no processo de secagem, que entra o “gogo” (pedra lisa que se encontra no leito dos rios, que também é conhecida por godo ou seixo), desenhando no barro meio verde os motivos decorativos, que são visíveis no produto final, apresentando um ligeiro brilho, provocado pelo atrito do gogo na peça. A seguir segue-se a cozedura.

A cozedura e a origem da cor negra
A Olaria de Bisalhães é conhecida pela cor negra das suas louças. O segredo está no forno e nos métodos da cozedura. O forno (existem sete na aldeia) é um buraco aberto na terra, com paredes revestidas a barro, sendo as peças colocadas numa grelha em ferro, com a lenha a crepitar. Para que os artigos cozam totalmente, põe-se por cima da louça, uma camada de rama de pinheiro verde a arder. Para impedir a libertação de fumos na cozedura, o forno deve ser “abafado” com camadas de caruma, musgo e terra. Este é o segredo da cor do barro de Bisalhães. Abafar a cozedura faz com que a cor negra se espelhe no produto final, se não se abafasse, a cor da louça seria avermelhada. a louça ficava vermelha. Para se obter uma cozedura perfeita, são necessárias cerca de vinte e quatro horas.

O segredo da bilha
As peças, cujas formas são heranças de gerações, contam um pouco da história e dos hábitos dos habitantes do concelho. Da aldeia de Bisalhães continuam, pois, a sair as louças churras para o forno, a assadeira, o alguidar para o arroz e os tachos, e as decorativas, ou louça fina, como as bilhas de segredo e de rosca, os vasos de argolas, as pichorras para beber vinho, e tantas outras que fazem o deleite dos visitantes.
A peça mais curiosa é, no entanto, a bilha de segredo. A pequena cântara de barro esconde um truque para apanhar/molhar os mais desprevenidos. A bilha apresenta um pequeno orifício na base superior, local onde devem pousar os lábios, mas possui uma série de aberturas, por onde pode passar a água. Para beber tranquilamente, ou seja, sem ficar com a camisa encharcada, é necessário tapar um furo escondido por trás da pega e sorver o líquido pelo buraco superior.

Feira dos pucarinhos
A Feira dos pucarinhos sempre foi um momento de tradição para os oleiros, que traziam o produto do seu trabalho até ao centro da “Bila”, para exibir com orgulho e satisfação as peças mais elaboradas e requintadas Conta quem ainda se lembra desses tempos, que os cestos cheios de louça eram transportados à cabeça das mulheres, apoiadas em rodilhas, sendo guardadas nos baixos de algumas casas, perto da Capela Nova e da Rua Central, até ao inicio da feira. Hoje as coisas mudaram mas o local da Feira dos Púcaros mantém-se o mesmo, do Largo da Capela Nova até à Rua Central, com principal incidência como diziam os antigos, para a zona entre o “Almeida e o Chaves”, dois estabelecimentos de referência de há algumas décadas. Na feira as vendas eram óptimas para os oleiros, fazendo escoar os inúmeros produtos expostos, cântaros, alguidares, assadeiras, tachos, potes, bilhas roscas e de segredo, porcas com crias, pichorras, brinquedos de barro – miniaturas de todas as peças confeccionadas, pucarinhos do peito, enfeitados com um lacinho de seda e ainda, panelos para jogar e partir, como manda a tradição, que segundo reza a história diz “ os panelos não são comprados, têm que ser roubados”.

O Jogo do Panelo

“Pucarinho é jogado
Pelo ar, de mão em mão.
Traz e leva segredinhos
Até se quebrar no chão”

Na noite de São Pedro, a tradição que percorre gerações de famílias da “Bila” e aldeias vizinhas, é juntar grupos de rapazes e raparigas, ao fundo da Avenida Carvalho Araújo, para “jogar ao panelo”. Jogo esse que mais não é, que atirar de mão em mão a “bilha redonda” como se fosse uma bola, até que a “azelhice” de mão escorregadia a fizesse partir no empedrado da avenida. É altura então, de arranjar outro panelo, para que o jogo prossiga, e aí o interesse é “roubá-lo”, como manda a tradição, de um expositor mais distraído, para que se jogue até o sol raiar.

As mãos que moldam a Louça Preta de Bisalhães

Quem entra na Cidade de Vila Real, vindo da primeira saída do IP4, antes de chegar ao centro da cidade, depara-se com cinco casinhas em madeira, propriedade da câmara, que albergam os artesãos da louça de Bisalhães.

Só uma delas está invariavelmente aberta, a que pertence ao Sr. Manuel Martins, 75 anos e artesão da louça negra a tempo inteiro, mas que ainda tem “vagar para fazer algum trabalhinho no campo, ca vida está ruim e temos que tirar da terra qualquer coisinha para encher o estômago”.

A porta da casinha do artesão abre-se quase sempre de segunda a sábado, pois ao “Domingo é dia do descanso do senhor”, e o ritual é sempre o mesmo, abrir as portas, levantar os taipais, alinhar no passeio a louça com os mais variados artigos, e esperar, sentado no banquinho ao sol de Inverno ou abrigado de ventos e chuva, que apareçam os compradores, pois a actividade é lucrativa e “produz”, a julgar pelas palavras do artesão: “temos dias de tudo, mas isto produz”.

As mãos calejadas e marcadas pelo tempo e pela labuta diária, seja na arte de trabalhar o barro ou da lida do campo, lá vão pegando na louça para mostrar aos visitantes, explicando para que servem as peças mais estranhas, ou desmistificando o sabor que o barro negro pode deitar à comida, afirmando com entusiasmo “é uma maravilha, isto é saudável. Um arroz de forno com este alguidar é de lamber os beiços menino”.

Se estiver em dia de sorte, é possível algumas vezes ver o “Ti Manel” trabalhar, no interior da sua loja, a arte de moldar a louça negra de Bisalhães, mas sente-se só nesta luta contra o tempo, que irremediavelmente irá levar “à morte desta arte. Só quatro fazemos isto e quando acabar a nossa vida, isto da louça vai morrer. Ninguém quer saber disto para nada”, desabafa com um tom de voz amargurada e cansada.

O Instituto de Emprego e Formação Profissional promoveu uns cursos de formação para estudantes universitários mas “acabou a verba, acabou o ensino”, como diz o artesão. “Já houve dois ensinos e até pagavam o ordenado mínimo, aqueles senhores… não me lembro… aqueles do desemprego, mas depois acabou a verba e acabou o ensino. Andaram lá meninas e rapazes do terceiro e quarto anos da universidade. Sabe, cheguei a ensinar esta arte ao doutor engenheiro. Isto dá trabalho mas é produtivo”.

Na opinião do artista do barro negro, o ensino devia continuar nas escolas, pois é na escola que se aprende tudo. “De quando em vez vamos ensinar a arte às escolas e liceus, a vários lugares, e quando vou a qualquer lado, digo pra mim – está bem que me pagam, mas que interessa isto se depois não dão seguimento – venho aqui só ganhar o dinheiro mas isto assim não interessa nada. Na escola é que se aprende tudo e esta arte devia ser dada nas escolas, como as do carpinteiro e outras que também estão a acabar”.

Chegou finalmente a hora de perguntar ao “Ti Manel” os processos de fabricação da louça negra, que como ele diz “isto não é fácil, menino. Há que comprar o barro, dantes tínhamos aqui o barro em Parada de Cunhos, mas agora vamos comprar a Chaves. Depois, vai para uma eira secar, quando está bem seca vai para um armazém, pica-se c’uns maços de madeira, qu’isto dá muito trabalho, num pio de pedra, depois fica em farinha. Depois é peneirado por uma peneira ou por um crivo para uma gamela, depois é amassado e depois é que é fabricado. Isto é muito trabalho, é por isso que os meus netos, tenho lá três netos, não querem fazer, qu’isto dá muito trabalho. Já andaram lá, a Nervir e a Câmara já andaram lá, uma coisa e outra, para pôr lá umas máquinas de moer o barro, que era a coisa mais número um que nós precisávamos. Eu fiz uma tolice muito grande, porque tive um amigo que foi há uns anos a Barcelos, custava cento e cinquenta contos uma máquina de moer o barro, e eu rejeitei. Rejeitei isso e rejeitei a carta de condução”.

Diz o ditado que quem anda por gosto não cansa, e mesmo sem carta de condução, o Sr. Manuel não falta ao seu “trabalho” apesar de “estar à mercê da minha filha e do meu genro”.
“Eu venho com a minha filha, que vem para o banco mais o meu genro, e venho para aqui desde as oito e meia. Quando venho… Tenho lá (Bisalhães) uma propriedade, mas venho aqui buscar algum para pagar umas jeiras, qu’inda pago umas jeirecas na propriedade. Pago para não ficar de velho, agora quando eu morrer, eu e a minha senhora… quem trabalhar na agricultura ainda vai comer uma grande sopa…”.

Reportagem “Tribuna Douro”

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