Cristóvão Ferreira, o jesuíta português que ‘chocou’ ao renunciar à fé no Japão

Macau, China, 20 dez (Lusa) – O jesuíta português Cristóvão Ferreira chocou o mundo, em particular a Europa católica, quando renunciou à fé, convertendo-se no “primeiro padre ocidental” a apostatar durante o período da perseguição lançada contra os cristãos no Japão no século XVII.

“Foi um grande choque, porque ele foi muito importante como jesuíta no Japão. Não era uma pessoa qualquer, [pelo que] a posição que tinha fez com que o impacto [da apostasia] fosse maior”, realçou a historiadora Mihoko Oka, da Universidade de Tóquio, à agência Lusa.

Tereza Sena, do Centro de Estudos Sino-Ocidentais do Instituto Politécnico de Macau, que publicou recentemente um artigo em inglês na Revista de Cultura intitulado “Em busca de um outro Japão”, subscreve: “O caso de Cristóvão Ferreira tem um peso fundamental porque é o primeiro padre ocidental a apostatar”.

O jesuíta português renunciou à fé em 1633, aos 53 anos. Não foi o primeiro a apostatar depois de ser submetido à tortura nem o último. Mas o seu caso constituiu “um traumático escândalo” para a cristandade e, em particular, para a Companhia de Jesus. Tanto que a instituição “demorou três anos a expulsá-lo”, complementa a investigadora.

Isto porque existiam “relatos contraditórios”, o que levou uma série de outros jesuítas a partirem em busca de Cristóvão Ferreira, que chegou em 1609 ao Japão, onde viveu quase duas décadas na clandestinidade.

Continuam, porém, a existir teses divergentes de como manifestou a sua intenção de apostatar ao fim de algumas horas na “fossa”, um método de tortura aplicado até à abjuração ou morte.

Cristóvão Ferreira era, “naturalmente”, “uma figura em grande tensão”, que “continuará a ser muito controversa”, porque “tinha tido extrema importância em termos da organização e manutenção da Companhia de Jesus, na qual teve cargos de grande responsabilidade”, sublinha Tereza Sena.

O jesuíta que antes havia descrito martírios acabou por vir a fazer parte da ‘inquisição’ japonesa, levando à apostasia de outros “que inclusivamente foram ao Japão com o propósito explícito de o fazer renegar à apostasia, como sucedeu com o segundo grupo Rubino”.

E se era difícil acreditar na queda de tal figura moral, apesar das provações a que fora submetido, mais complicado terá sido o transtorno de aceitar que Cristóvão Ferreira ficara ao serviço das autoridades japonesas.

Após renunciar à fé, Cristóvão Ferreira inscreveu-se num templo – prática que os apóstatas teriam de cumprir –, adota um nome japonês (Sawano Chuan) e “vive o resto da vida desesperadamente”, descreve Mihoko Oka.

O seu nome surge associado a obras como a “Revelação das Falsidades”, em que explica “as contradições dentro da fé”, bem como tratados de cariz científico, ligados à medicina e à astronomia.

Relativamente à primeira, que terá sido produzida em 1636, Tereza Sena nota, porém, que “há uma grande discussão em torno da autoria”, mas “não parece haver dúvidas, até pelo próprio teor e conhecimento em matéria teológica e do catolicismo, que é irrefutável a sua contribuição para a obra, que apenas foi descoberta no século XX, estranhamente selada”.

Cristóvão Ferreira morreu em 1650, mas permanece até hoje uma dúvida: ter-se-á arrependido antes do último suspiro? “Schütte, jesuíta alemão muito sério, por exemplo, vai por essa linha de que terá sido um mártir no fim, que morreu na fé de Cristo, mas não há fontes que o comprovem claramente”, assinala Tereza Sena.

Sabe-se que Cristóvão Ferreira constituiu família, havendo “pelo menos uma filha conhecida”, indicou Mihoko Oka.

“Formalmente, e com a inscrição tradicional japonesa no templo e no altar do cemitério da família, ele aparece como chefe, ou seja, como primeiro de uma família. Nominalmente ou de facto – não se sabe muito bem”, complementou Tereza Sena.

Cristóvão Ferreira, que morreu em Nagasaki, foi sepultado em Edo (atual Tóquio).

O jesuíta português figura no centro do filme “Silêncio”, do realizador Martin Scorsese, uma adaptação da obra homónima de Shusaku Endo (1923-1996), que tem estreia prevista em Portugal para janeiro.

A história do filme também se encontra ligada à presença dos jesuítas em Macau, onde Cristóvão Ferreira estudou teologia, já que Macau era então sítio de passagem obrigatória daqueles que eram enviados para o oriente.

“Recriámos Macau de 1640”, disse o realizador Martin Scorsese, em outubro do ano passado. “Silêncio” foi rodado em Taiwan.

Macau, onde os portugueses se instalaram em 1557, é uma das mais antigas dioceses do extremo oriente e foi o local escolhido para erguer a primeira universidade de estilo ocidental na Ásia Oriental, uma escola da Companhia de Jesus, de que hoje apenas resta a fachada da igreja, as famosas ruínas de São Paulo, ex-líbris da cidade.

DM (CSR/FV) // PJA – Lusa/Fim

 

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